A hipocrisia fora da sala

Alguns países buscam oferecer sobrevivência mais segura para usuários de drogas, reduzir seus riscos e de seu ambiente social e ampliar chances de tratamento

Flávio Aguiar

Berlim, usuários esperam para usar a narcossala itinerante

O nome pode variar: narcossalas, salas seguras, safer injecting rooms, ou salas de pico, Drogenkonsumräume. O conceito é quase sempre o mesmo, nos países que as admitem e cujos governos, em diferentes níveis, as patrocinam: possibilitar aos consumidores de drogas que não podem ou não querem abandoná-las condições mais seguras para seu uso e que inibam outras conse­quências, como a proliferação de doenças contagiosas (aids, hepatites) através de seringas compartilhadas.

Nessas salas se oferecem instrumentos para a manipulação das drogas (não a própria droga). E também assistência médica e psicossocial a usuários (e famílias), bem como “pontes” para tratamentos, visando à redução controlada do consumo até seu abandono. Assim se procura contornar problemas causados pelas crises de abstinência que atacam o usuário que decide abandonar a droga por conta própria. No mais das vezes, isso produz recaídas que agravam a situação e abrem portas para misturas em coquetéis ameaçadores.

A política de adoção dessas salas começou na Europa. O primeiro país a adotá-las oficialmente foi a Holanda, onde as discussões começaram nos anos 1970.

Houve iniciativas paralelas, como a criação de um café, em 1986, em Berna, na Suíça, onde usuários de drogas eram bem-vindos, ao contrário de outros cafés e bares. Em 2009 existiam 92 dessas salas na Europa, em 61 cidades. Elas estão presentes na Espanha, Noruega e Luxemburgo. Também fazem parte de iniciativas do Estado no Canadá e na Austrália. Na França, o tema está em debate.

Na Alemanha, as discussões partiram de Hamburgo, onde passou a primeira legislação a respeito, e em Frankfurt, onde a primeira sala foi aberta, em dezembro de 1994. Hoje, 16 cidades do país têm salas. As instalações, mantidas pelo governo federal, estadual (de quem depende a legislação) e municipal e por contribuições privadas, não se limitam a oferecer ambientes para o uso de droga. Há cozinhas, salas de atendimento, leitura e lazer.

Conceitualmente, os objetivos dessas instalações são: a sobrevivência mais segura do usuário, reduzindo os riscos; melhorar a saúde e propiciar estabilização psicológica, individual e do grupo social; fazer uma ponte para alternativas de tratamento; impedir a desinte­gração familiar e social que muitas vezes acompanha o uso de droga;  propiciar a familiaridade com o uso controlado, evitando misturas e overdoses; obter a progressiva redução do consumo e da incidência de doenças; e evitar ou diminuir a ocorrência do uso de drogas em locais públicos, como toaletes de rodoviária (muito comum), parques, estacionamentos, ruas ou nas residências, o que aumenta os riscos para a saúde e estimula a degradação pessoal e social.

Inicialmente a maior preocupação dessas casas era com as drogas injetáveis. Hoje seu âmbito é maior, abrangendo as inaladas. Estabeleceram-se especializações em algumas delas, dirigidas exclusivamente para mulheres ou para jovens. Já há as que incluem atenção especial a idosos.

Por trás dessas iniciativas está o conceito de que o usuário de drogas ilegais, antes de ser um “criminoso”, é um cidadão. Porém nem tudo são flores. Na França, o debate a respeito é vivo. Na Alemanha, em estados movidos por uma ideologia conservadora, houve recusa à adoção de tais salas. Seus defensores, por outro lado, argumentam que pensar numa sociedade contemporânea (aliás, mesmo as antigas) sem o uso de drogas ilegais é algo absolutamente irreal. E que, se os avanços são lentos dentro desse tipo de política, eles oferecem uma ponte para um mundo mais seguro e cidadão.