É uma ordem superior

Durante oito anos, abriram-se ruas e ergueram-se lares. Em quatro meses a PM arquitetou a destruição. Em algumas horas, 6.000 pessoas estavam despejadas

De uma hora para outra, a vida em cinzas (Foto: Roosevelt Cassio/REUTERS)

Quarenta oficiais de Justiça, 2.000 policiais (entre Tropa de Choque, bombeiros e efetivo local), mais de 200 viaturas, 100 cavalos, 40 cachorros e 3 helicópteros. Todo esse aparato foi mobilizado nas primeiras horas de 22 de janeiro, um domingo, para cumprir uma ordem judicial de reintegração de posse no bairro Pinheirinho, em São José dos Campos, principal cidade do Vale do Paraíba, no interior paulista, a menos de 100 quilômetros da capital. Três dias depois, às 19h20 do dia 25, o Tribunal de Justiça de São Paulo declarava que o mandado havia sido integralmente cumprido e o imóvel, “livre de coisas e pessoas”, entregue ao representante legal da massa falida da empresa proprietária.Q

As “pessoas” (em torno de 6.000) foram despejadas e as “coisas”, destruídas, em ação criticada por entidades ligadas aos direitos humanos e pelo Ministério Público Federal (MPF). Pinheirinho era uma área ocupada desde 2004, com a chegada de famílias vindas de outras áreas da cidade. Agora, elas perderam o espaço para uma empresa em débito com a própria prefeitura, por falta de pagamento de impostos. O terreno pertence à massa falida da Selecta Comércio e Indústria, originalmente ligada ao empresário Naji Nahas, preso em 2008 na mesma operação da Polícia Federal (Satiagraha) que envolveu o empresário Daniel Dantas. Ambos foram acusados de crimes financeiros.

A jornalista Lúcia Rodrigues (foto), da Rádio Brasil ­Atual, ficou sob a mira de uma arma, mesmo depois de se identificar. “Quando vi que o policial ia atirar, comecei a correr”

Jornalista Lúcia Rodrigues“Pinheirinho era quase todo de construções de alvenaria, tinha ruas, calçadas, praça, igrejas, comércio, postes, serviço de água, lixo. Por que não consolidá-lo como bairro, como base no direito humano à moradia?”, questiona o ex-secretário de Direitos Humanos Nilmário Miranda, criticando o prefeito de São José, Eduardo Cury (PSDB). “Essa gente fecha os olhos para a grilagem de terras públicas, inclusive em áreas de proteção, mas é inflexível quando são os pobres os que ocupam para morar.”

As denúncias de violências contra os moradores vieram de fontes diversas. A jornalista Lúcia Rodrigues, da Rádio Brasil ­Atual, que acompanhava a operação, ficou sob a mira de uma arma, mesmo depois de se identificar. “Quando vi que o policial ia atirar, comecei a correr. Eu estava mais à frente, mas tinha moradores comigo. Assim que saí do raio de tiro, comecei a gravar o que estava acontecendo e um dos moradores veio me dizendo: ‘Ele atirou!’ Acabei sabendo por testemunhas que o guarda disparou contra mim duas vezes.”

A urbanista Raquel Rolnik, relatora especial das Nações Unidas, fez um apelo às autoridades para que suspendessem o despejo e se esforçassem para encontrar uma solução pacífica, incluindo alternativas de habitação para as pessoas. Por que elas resistiram?, questionou a própria Raquel em seu blog. “Para quem promoveu a reintegração ou a limpeza, o fundamental é ter o local vazio, e não o destino de quem estava lá. ‘Resolver’ a questão é simplesmente fazer desaparecer o ‘problema’ da paisagem.”

Em 27 de janeiro, o procurador Ângelo Augusto Costa, do MPF de São José, recorreu da sentença que extinguiu uma ação pública que pedia a responsabilização do município por omissão. Na mesma ação, constava o pedido de que União, estado e município fossem condenados a garantir direito a moradia aos desalojados no caso de cumprimento da reintegração de posse. Após o despejo, ele constatou as “condições precárias do local”.

A ação havia sido extinta por juiz federal, por entender que não existia interesse federal no caso. Uma decisão equivocada, segundo o procurador. “Não se está discutindo a questão da competência da ação da reintegração de posse”, afirmou, lembrando que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) havia reconhecido a Justiça estadual como competente para o caso. Segundo Costa, a ação civil “restringe-se à garantia dos direitos fundamentais das pessoas desalojadas”.

Ainda não se sabe ao certo o destino de toda aquela gente, removida por uma ordem superior, como na música Despejo na Favela, de Adoniran Barbosa. Parece ser mais uma vitória da intolerância e da falta de bom senso, da ausência de política para questões sociais e do excesso de polícia, como definiu Raquel Rolnik – colocando na conta do governo paulista as recentes ações de guerra contra os assentados do Pinheirinho, os usuários de crack no centro da capital e os estudantes da USP.

Em São José, as polícias do estado e do município garantiram na marra que fosse ao chão, em questão de horas, um assentamento erguido durante oito anos – tempo suficiente para uma solução que considerasse o aspecto humano do caso.

Num gesto inusitado, a juíza Márcia Mathey Loureiro, da 6ª Vara de São José dos Campos, foi pessoalmente ao local conferir a execução de sua ordem. E elogiou a ação policial (assista acima), calculada, segundo ela, durante quatro meses – o que revela o desinteresse de se arquitetar uma solução pacífica para o caso. E a pergunta feita na canção de Adoniran vale para ela: “Mas essa gente, aí, hein, como é que faz?”