Não dê sopa à baixaria

Enquanto redes sociais não desenvolvem meios de coibir crimes contra a imagem, a honra ou a privacidade, melhor agir com prevenção do que dar margem para censura

Marília foi caluniada em disputa eleitoral na faculdade (Foto: Gerardo Lazzari)

Os projetos de lei americanos identificados pela sigla Sopa (Stop Online Piracy Act, ou Lei de Combate à Pirataria On-Line) e Pipa (Protect IP Act, ou Ato para Proteção da Propriedade Intelectual) foram assunto no mundo todo nos últimos meses e reacenderam a discussão sobre limites e liberdade na internet. O Sopa sugeria penas de até cinco anos de prisão para quem compartilhasse conteúdo pirata por dez ou mais vezes ao longo de seis meses. Sites como Facebook, Google e Yahoo, por exemplo, poderiam ser punidos por permitir ou facilitar a pirataria, com risco de ter seus serviços encerrados. Páginas estrangeiras hospedadas em provedores americanos também estariam sujeitos a punições, bloqueios e banimentos.

Como demonstração do que poderia acontecer, alguns grandes provedores e redes sociais tiraram suas páginas do ar em protesto e, diante da repercussão, os projetos foram engavetados por tempo indeterminado. Mas a todo momento pipocam ideias dirigidas a controlar e colocar limites na web; o Brasil também tem a sua. Apelidado de AI-5 Digital, o Projeto de Lei 84/99, de autoria do então  senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG), hoje deputado, está há 12 anos em tramitação no Congresso e foi ressuscitado no meio do ano passado após uma onda de ataques de hackers a sites oficiais.

Entre outros pontos, o texto prevê punição de até seis anos de prisão mais multa para crimes como: acesso não autorizado a sistema informatizado restrito; inserção ou difusão de código malicioso ou vírus em sistema informatizado; estelionato eletrônico; e falsificação de dados eletrônicos ou documento público ou particular, entre outros.

Sérgio Amadeu (Foto: Daniele Pereira/Creative Commons)Se o projeto for aprovado como está, o internauta precisará se identificar a cada acesso à internet e os provedores guardarão dados dos usuários por três anos. Sua votação vem sendo sucessivamente adiada.

Para o professor e sociólogo Sérgio Amadeu (ao lado), leis como essas promovem na verdade um vigilantismo para tentar controlar e tomar de volta o poder que, na web, é de todos. “No Brasil, quando alguém quer aprovar uma lei repressiva, argumenta que é para combater a pedofilia. Nos Estados Unidos isso acontece com o terrorismo”, afirma Amadeu. “Esses jargões querem criar um momento em que as pessoas abram mão de direitos em função da segurança.

Existem exageros? Claro que sim. Mas nas ruas acontece de tudo: crimes, acidentes de carro e o que a gente tem de fazer? Melhorar nossa capacidade de sinalizar, colocar policiamento, e não impedir que as pessoas andem livremente, façam manifestações. No cyberespaço é o mesmo fenômeno”, defende.

Código penal

Mas não dá para negar: acontecem abusos nas “ruas vir­tuais”. Diariamente pessoas sofrem calúnias, difamações, têm fotos pessoais divulgadas e a vida exposta por terceiros, por diversos motivos. O agravante é que, uma vez na rede, não há mais controle sobre isso. A jornalista Marília conhece muito bem essa história. Quando ainda era estudante em uma universidade conceituada de São Paulo, montou uma chapa política para concorrer ao Diretório Central de Estudantes (DCE). A chapa rival, formada por um grupo que estava no poder havia dez anos, resolveu partir para ofensas na internet.

“Criaram várias comunidades no Orkut, na época, me chamando de vaca, prostituta, biscate. Eu sabia que eram eles porque também me agrediram no jornal da faculdade” conta.

Marília diz que passou a ver gente apontando o dedo para ela na faculdade e não sabia como se defender: “Cheguei a falar com um advogado, mas fui desencorajada a processar. Aí denunciei aos gestores do site, que tiraram do ar depois de bastante tempo. Mas não sei se ainda existe alguma comunidade porque quando uma baixaria era apagada nascia outra”.

A produtora Raquel também enfrentou maus bocados em redes sociais. Ela conta que começou a ser perseguida em um blog de fotos que mantinha: “Lá qualquer pessoa podia comentar e vez ou outra apareciam ofensas anônimas do tipo ‘como você é gorda’ e ‘te odeio’. Eu deletava, mas ficava muito brava, chorava, tinha medo, não fazia ideia de quem poderia ser e só me perguntava por que aquilo acontecia comigo”. Raquel lembra que, quando passou a participar de uma rede social, a pessoa fez um perfil falso para continuar com as agressões, agora direcionadas não só a ela, mas também ao namorado.

A internauta diz que só depois de muito tempo se acostumou com os comentários e parou de ter medo da pessoa por trás das ofensas. “Não tomei nenhuma atitude, porque achei que iria me estressar muito se entrasse com algum pedido de encontrar essa pessoa. Mentiria se dissesse que não tenho curiosidade de saber quem é, não sei se ainda me persegue, mas queria saber qual é o problema comigo.”

Embora a maioria dos internautas agredidos não cobre a conta na Justiça, o advogado Marco Aurélio Florêncio Filho, vice-presidente da Comissão de Alta Tecnologia da seção paulista da Ordem dos Advogados do Brasil, explica que o Código Penal, criado em 1940, prevê esses crimes.

“Os crimes praticados no mundo virtual são os mesmos do mundo real. Muda apenas a ferramenta. Calúnia, injúria, difamação e outros delitos como ameaças, constrangimentos, estelionatos ou furtos qualificados estão previstos no Código – 95% dos crimes cometidos na rede já estão tipificados”, afirma.

De acordo com Florêncio Filho, muitas pessoas têm procurado a Justiça, prova disso é o grande número de escritórios se especializando em direito digital.

“O crime de calúnia, aliás, é mais fácil de provar quando cometido pela internet. Basta você ir atrás da pessoa por meio do IP. No caso da calúnia falada, ao vivo, é preciso de testemunhas para provar que foi feita.”

Estragos maiores

O advogado é crítico do projeto de ­Azeredo, principalmente pela proporcionalidade das penas e por criminalizar mais o meio (internet) do que o fim. “Não existe anonimato na rede porque isso é inconstitucional. Nossa Constituição veda o anonimato, mas garante a privacidade. São duas coisas diferentes. A privacidade é assegurada até o ponto em que você não pratique ilícitos. Ninguém vai entrar na sua casa sem um mandado. Na internet, você tem a garantia de que ninguém vai entrar no seu IP para identificar um crime sem um mandado”, explica. Ainda assim, ele admite que, quando praticadas na rede, calúnia e difamação provocam estragos maiores. “Deveria haver um apêndice na lei de calúnia e difamação, porque feitas na internet têm potencial muito mais lesivo, já que a rede não dá direito ao esquecimento.”

Um árbitro de futebol ofendido pelo jogador Neymar não esqueceu. Recentemente, o atacante do Santos foi conde­nado a indenizar Sandro Meira Ricci em ­­­­­­­­­­­R$ 15 mil por declarações difundidas contra o juiz no Twitter, em 2010, durante a partida Santos x Vitória pelo Brasileirão. Neymar estava fora do jogo e, irritado com a marcação de um pênalti contra sua equipe, escreveu no microblog: “Juiz ladrão, vai sair de camburão”. A frase teria voado com o vento se ele apenas a tivesse gritado no momento de raiva, mas ficou em seu DNA digital quando apertou o “publicar”.

O jornalista Miguel Arcanjo, editor de Famosos e TV do portal R7, acompanha esses barracos. Para ele, celebridades também esquecem que redes sociais são lugares importantes da comunicação atual. “Não é uma mesa de bar ou uma reunião de amigos em casa. O que se diz ali fica gravado. Então, é preciso ter cuidado antes de dar uma opinião ou ofender alguém. Temos exemplos clássicos, como o da atriz Luana Piovani, que expõe toda a sua vida no Twitter e ainda o usa para falar mal de desafetos”, observa o editor.

“Por outro lado, com a comunicação instantânea permitida pelas redes sociais, os famosos conseguem atingir seus seguidores e a imprensa especializada, que repercutem o que dizem e também apostam na audiência da web. Ficar mais famoso ainda e se manter na mídia, ajuda nos contratos publicitários e convites de trabalho.”

Muitos setores se beneficiam da falta de privacidade (veja quadro), como observa o consultor de tecnologia da informação Marcello Morettoni: “As redes sociais são a realização dos sonhos de qualquer marqueteiro. As pessoas falam sobre elas mesmas, seus gostos, suas preferências, objetos de desejo, consumo, tudo!”

No Facebook, lembra o consultor, a publicidade é direcionada. “O objetivo é seduzir o usuário a clicar no anúncio que aparece na lateral da sua página, colocado ali porque tem a ver com você.”

Morettoni admite que não há privacidade na web e afirma que cabe a cada um prestar atenção ao que expõe, ao que escreve e ao que lê: “Antigamente as pessoas não acreditavam em coisas que liam na internet. Hoje acreditam em tudo: que aquela notícia é verdadeira, que é realmente o Jô Soares falando com elas via Twitter… Não filtram mais as informações. Parece que ficamos todos bobos!”

Mas o consultor engrossa o coro dos que lutam para que a web continue livre: “Regulamentar conteúdo na internet é o mesmo que não poder mais falar ao telefone! A rede não tem dono, é um meio de comunicação, uma ferramenta. Não cabe a nós barrar o fluxo da tecnologia, e sim nos adequarmos”.

Sérgio Amadeu observa que quando alguém comete um crime, um ataque, a internet é responsabilizada. “A gente esquece a pessoa ou o grupo e acaba atacando a própria rede, pensando em meios de contê-la. É preciso que se preserve a liberdade, se respeitem os direitos humanos e não se esqueça de que existe exagero hoje como existia antes! É claro que hoje ele se dissemina muito mais rápido, por outro lado você consegue reagir mais rápido”, afirma Amadeu. “Há de se penalizar quem comete crimes e ofensas pela web. O que não podemos deixar é que leis transformem a internet em uma grande rede de TV a cabo.” 

_____________________

Como se proteger?

Há várias formas de se proteger de assédios, crimes, calúnia e difamação na rede. Nem sempre funcionam, assim como no “mundo real”. Mas vale a pena saber o que fazer para não se tornar uma vítima  e, quando for, o que fazer para resolver a situação.

A primeira dica,  do especialista em tecnologia da informação Marcello Morettoni, é: “Privacidade. Não coloque tudo sobre você nas redes sociais. Há quem coloque onde está, onde estuda, onde trabalha, onde mora, fotos dos filhos. Tudo isso gera elementos para criminosos e pessoas mal intencionadas em geral”.

Ele diz que é preciso estar atento a e-mails suspeitos que podem instalar vírus e trojans no computador, verdadeiras “portas de entrada” para senhas e cartões de crédito, por exemplo. “Na dúvida, não abra arquivos suspeitos. Se você conhece o remetente, peça para confirmar o envio.”

Para denunciar crimes de pedofilia, racismo, xenofobia, maus tratos a animais, homofobia, dentre outros, há alguns sites na rede. Um dos mais conhecidos é o da Safernet, entidade referência no enfrentamento a crimes e violações aos direitos humanos na internet: www.safernet.org.br.

As denúncias são encaminhadas a instituições pertinentes a cada caso. A Safernet também tem uma porção de cartilhas e vídeos  explicativos sobre prevenção na rede.

Se você for vítima de crime digital, a primeira coisa a fazer é imprimir a página do site. O segundo passo é entrar em contato com uma Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática – existem várias espalhadas pelo país.

Também já existem advogados especializados no assunto. O conselho da vovó ainda vale: “Melhor prevenir do que remediar”. Por isso, pense duas vezes antes de apertar o “enter”.

___________________________

Você está sendo vigiado

Com a superexposição das redes sociais como Facebook e Orkut, ficou fácil catalogar consumidores por perfis superespecíficos, interferir nos desejos e até monitorar o pós-consumo.

Empresas especializadas, passam para seus clientes relatórios de resultados de campanhas e a impressão das pessoas sobre determinado produto em tempo real.

Alessandro Barbosa Lima, executivo de uma empresa que oferece esse tipo de serviço a grandes marcas, explica que o trabalho consiste de pesquisar o comportamento do público-alvo nas redes, entender o que busca, o que fala com amigos e parentes. Isso alimenta várias áreas de uma empresa. “Nas redes sociais, o consumidor se tornou totalmente transparente”, define.

“A gente consegue saber quando alguém está decidindo comprar um produto, definir estratégias para influenciar esse processo e acompanhar suas impressões depois da compra.”Assustador? Talvez. Mas isso aumenta a responsabilidade de cada usuário em relação ao modo como lida com a internet, ou com pessoas que lidam com ela.

Como alerta o consultor de tecnologia da informação Marcello Morettoni: é melhor o internauta agir com cautela em relação aos riscos de estar exposto a aspectos negativos da web do que admitir mecanismos de controle que tenham impacto sobre seus aspectos positivos.