O jogo

Recato e indecência eram características que, juntas, faziam estrago na cabeça dos homens. Era o charme que ela começava a assumir depois da terceira cerveja

A voz quase não saiu. Contou até dez. Inspirou e soltou o ar bem devagar. No fundo sabia que nada adiantaria. Sempre ficava assim nessas situações. Olhou para o lado para ter certeza que ninguém observava a cena, que achava ridícula e infantil. Quase 30 anos e não conseguia perder aquela vergonha que a fazia corar quando alguém flertava com ela de maneira mais incisiva.

Seus pés sob a mesa estavam inquietos, apoiados no chão apenas com as pontas. ­Suas mãos suadas sobre as coxas denunciavam nervosismo. Quando sentiu que a conversa estava chegando ao ápice, percebeu que sua bexiga não aguentaria mais um minuto. Odiava levantar da mesa. Todos pensariam “de novo!”, e ririam das pernas a se esbarrarem uma na outra pelo caminho.Xandra Stefanel

Ele balançou a cabeça e tirou a carteira do bolso para pedir a conta. “Hoje eu pago”, disse ela.

Quis brincar com a própria timidez. “Depois que a gente vai pela primeira vez…”, disse. Riso sem graça e aflito. Virou as costas e sentiu que ele olhava para sua bunda e para o lado, como a insinuar aos outros observadores que aquele seria seu troféu. Olhou para trás antes de entrar no banheiro e comprovou sua teoria. “Não disse? Esse sorrisinho não me engana”, pensou. Aquela carinha de bom moço escondia um conquistador barato que faz lista de mulher que já pegou.

Baixou o zíper, abriu o botão e desceu a calça até os joelhos. Encostou a mão esquerda na parede de trás do vaso e equilibrou-se. Esboçou um quase sorriso de alívio. Quando olhou para sua calcinha viu que não havia possibilidade de mostrar aquela peça de museu nem para o espelho, quanto mais a um homem. Essa mania de sair com calcinhas de usar em casa ainda a mataria de vergonha. “Ah, mas por que não?” Deu uma risada baixa, a cerveja já estava fazendo efeito.

Lavou as mãos enquanto fazia careta na frente do espelho, molhou os lábios com a língua e em seguida passou-a nos dentes. Sentiu-se objeto e poderosa ao mesmo tempo, e gosta de perceber a contradição. O recato e a indecência eram características que, juntas, faziam estrago na cabeça dos homens. Era o charme que começava a assumir depois da terceira ou quarta cerveja.

Quando abriu a porta e olhou para toda aquela gente do bar, fincou as unhas na palma da mão. Respirou e andou até sua cadeira. Encheu seu copo de novo e bebeu metade. “Calor, né?” Continuou ouvindo aquele papo furado sobre o tempo, mulheres que demoravam no banheiro, histórias sobre as “amigas” e tantas outras coisas que a faziam rir cada vez mais por menos motivo, a cada novo copo. Sabia que amanhã seria dia de ressaca moral e física, mas era tarde demais.

Depois de algumas insinuações, indiretas, mão na coxa, pernas semiabertas e muitos copos, o celular tocou. Ela fez uma careta, pediu desculpas sem soltar som algum dos lábios e se levantou já falando alto com a pessoa do outro lado da linha. Quando percebeu o volume da sua voz e do riso, ali em pé, bem no meio do bar, resolveu ir até o banheiro para terminar a conversa. “A conversa estava boa, hein?”, teve de ouvir, quase num tom de inquisição. “Pois é, era uma amiga me chamando para uma festa.”

“Hoje?” “Daqui a pouco. Preciso ir.” Ele passou a mão nervosa na boca e pediu que ela não o deixasse ali sozinho. “Desculpe, sei que você vai entender.” Claro que não entendia. Ele balançou a cabeça e, como se estivesse se conformando, tirou a carteira do bolso para pedir a conta. “Hoje eu pago”, disse ela. “Além de você não conseguir o que quer, vai ter prejuízo?”, riu alto. Já em pé, abraçando-o pelas costas, colocou uma nota de 50 no bolso da camisa dele e piscou como se dissesse “fique com o troco”. Deu-lhe um beijo bem no canto da boca e saiu rebolando muito mais do que quando entrou.