TV com identidade

Estudantes e professores de ensino médio no Distrito Federal usam projeto comunitário de TV como ferramenta de aprendizado para decifrar e intervir em sua realidade

Professor Wagner e turma do Parabólica: tudo é pauta (Foto: Augusto Coelho)

“Saber que os alunos não se interessavam muito pelas minhas aulas me angustiava. Estavam sempre conectado às redes. Era eu que precisava entrar no mundo deles.” O desconsolo de um educador, cansado da tradicional metodologia aplicada nas escolas, foi o ponto de partida para mudar a vida de muitos dos seus alunos. A ideia do professor de História Wagner Júnior surgiu quando notou que o conteúdo de suas aulas pareciam ser mais relevantes para si mesmo que para os alunos. Mas o “professor amigo” achou melhor não se impor contra aquilo que tanto tirava a atenção de meninos e meninas: decidiu unir-se às redes e mídias digitais e idealizou um programa de TV “de jovens para jovens”.

Em 2007, no Centro Educacional (CED) do Vale do Amanhecer, bairro da cidade-satélite de Planaltina, no Distrito Federal, nascia o Projeto Reação, produzido e dirigido por alunos, e tendo alunos como público-alvo. A ideia começou como contraponto ao lugar-comum das emissoras convencionais, em que “o mundo é um sonho eterno e quem nasceu na periferia só poderia ser representado pela empregada negra ou pelo bandido pobre”, critica o professor. Seu objetivo era estimular os jovens a vasculhar sua identidade, a se interessar mais pela realidade ao seu redor – até para questionar mais o professor, desde a matéria lecionada por ele até os assuntos cotidianos da vida de um jovem em formação.

O Reação começou com Wagner e mais sete de seus alunos, que, com inúmeras ideias e nenhum recurso, puseram em prática a realização de um sonho: um programa de TV.  Mas a história do Reação não se limita a um processo de ensino estático e imutável. Wagner viveu na pele a rotina, às vezes sofrida, de professores da rede pública de ensino submetidos à troca de salas e escolas. E não desistiu. Levou adiante sua filosofia de ensino: falar a linguagem dos jovens a quantas escolas forem necessárias.

Janaína Cândido, participante da primeira turma do Reação, lembra que os alunos se envolveram por causa da diferença entre a política de dentro da sala aula e a aplicada no novo projeto, no qual criatividade e liberdade andam juntas, segundo a estudante. “Foi criada uma autonomia. A iniciativa passou a nos oferecer uma nova identidade, outra visão de mundo, seja para atuar em comunicação ou em qualquer outra profissão”, conta Janaína. Ela entrou na Faculdade de História na Universidade de Brasília e continua no projeto, repassando o que aprendeu a novos alunos.

No início, como lembra Janaína, tudo era feito no pátio da escola. Quem tinha maior habilidade com a câmera imediatamente virava o cinegrafista, o trabalho de confeccionar os painéis ficava a cargo de quem tinha habilidade manual. E assim o projeto foi sendo aperfeiçoado e tomando formas, à medida que os alunos viravam praticamente profissionais de TV, cada vez mais envolvidos e dedicados ao projeto.

A troca de escola se consumou em outro braço do Reação. A ideia do professor Wagner chegava a Sobradinho, outra cidade-satélite. O Programa Parabólica, inicialmente, era uma peça de teatro com abordagens sobre o universo das drogas. A partir dele, Wagner Júnior propôs um programa de televisão para tratar de vários temas, incluindo o inicial. “Lá ninguém é obrigado a fazer nada. Você é provocado a fazer alguma coisa, e isso te dá maior responsabilidade”, conta Daniele Paiva, aluna da escola do Centro de Ensino Médio 01, de Sobradinho.

Em parceria com a TV Cidade Livre, de Brasília, alguns programas são transmitidos ao vivo do estúdio da própria emissora. Depois, seus arquivos vão para a internet, para que sejam divulgados e debatidos. Fora dali, a iniciativa é movida a improviso. Dos equipamentos de audiovisual ao cenário, tudo é emprestado, doado ou conquistado, mas quem vê a dedicação e o empenho dos jovens sente-se num ambiente de profissionais de jornalismo e de grandes emissoras.

Com o objetivo de construir uma mídia mais democrática e sintonizada com a realidade, os programas de TV são realizados e mantidos pelos próprios alunos e por pessoas da comunidade que acabam se tornando parceiras do projeto. Um empresta uma câmera daqui, outro faz um painel dali, e assim os programas assumem caras e cores. Apesar de o Parabólica atual­mente ser tocado em apenas uma escola, o espaço é livre a todos que quiserem participar. As pautas e os temas são definidos em reuniões ou mesmo no dia a dia dos próprios alunos e colaboradores – expectativas para a universidade, educação, drogas, religião, sistema de cotas, saúde e sexo, assuntos não faltam.

Nos programas de TV, não são só professores que orientam os alunos no conteúdo e na produção. Janaína, por exemplo, ensinou Daniele a construir roteiro e a produzir. E Daniele pretende fazer o mesmo. Ela acabou o ensino médio e garante: mesmo quando já estiver na universidade pretende continuar envolvida no projeto, levando a novos alunos o que  aprendeu.

Wagner gosta de citar o educador Paulo Freire para explicar de onde vem a metodologia que carrega consigo dia a dia, de aluno a aluno: “A escola é lugar de fazer amigos”. Ele conta que antes de se formar em História já via o ofício de educador como uma possibilidade de conhecer mais pessoas e passar adiante o que aprendeu. Mas sempre se questionou sobre a responsabilidade de lecionar. “Eu não posso falar para uma pessoa que tudo o que ela precisa saber é o que eu sei, é o que eu estou passando pra ela”, lembra.

Foi então que o professor começou a mudar a metodologia, tanto na sala de aula como na gravação dos programas. Quando um aluno entende que há um processo de construção de identidade e de conhecimento a partir de questionamentos como “de onde vim, quem sou e para onde vou”, ele consegue buscar respostas além do conteúdo ensinado. “Hoje, quando esses meninos vão para a sala de aula já conhecem o mundo. Não existe educação sem conflito e, para existir conflito, tem de existir diálogo.” Daniele Paiva afirma que seu amadurecimento e sua responsabilidade são resultado, em grande parte, do envolvimento com o projeto. “Mudou a minha vida.”

O futuro

A visibilidade do projeto, já na escola de Planaltina, tomou uma proporção inesperada para os alunos e professores envolvidos, mas muito bem-vinda. Com a divulgação dos programas pelo Youtube, outras escolas puderam ter acesso ao conteúdo e às discussões, despertando, assim, a disseminação do interesse para outros cantos de Brasília, inclusive de professores que no início eram reticentes quanto ao teor dos debates e ao entusiasmo dos alunos.

Mas, sim, eles têm uma pretensão: a construção de uma emissora com conteúdo feito por jovens e para jovens. “Quanto mais a gente discute televisão e faz a nossa, menos se dá espaço a grandes empresas que utilizam esse espaço público como um mecanismo ideológico e comercial”, ressalta Wagner.

“Tenho muito a agradecer a esse projeto, por isso não largo, não abandono. Fico feliz porque a gente está ganhando uma visibilidade legal, com pessoas apoiando, acreditando na iniciativa. Isso é gratificante, porque é uma luta que já faz quatro anos. Demorou, mas estamos conseguindo”, comemora Janaína.