A Augusta como ela foi

Entre uma fase e outra de decadência, ele continua uma das ruas mais famosas de São Paulo, polo de pluralidade onde paulistanos e visitantes praticam o turismo cultural

Juliano Cazarré e Carolina Abras e em cena de Augusta – O Filme, de Francisco Cesar Filho (Foto: Tuca Vieira/Divulgação)

Chega em breve aos cinemas Augustas – O Filme, estreia do documentarista Francisco Cesar Filho em longa-metragem de ficção, no qual a rua famosa de São Paulo é o cenário dos inusitados universos urbanos da vida de um jornalista recém-demitido. “A Rua Augusta tem uma gigantesca quantidade de moradias, pequenos comércios e serviços, onde muita gente mora e trabalha; botecos populares, onde as pessoas almoçam seu PF. Procuramos esse aspecto para o filme, e não o das baladas. Também exploramos um pouco o desenho da rua”, conta o diretor.

Ator Mário Bortolotto (Foto: Tuca Vieira/Divulgação)A Augusta, aliás, há muitas décadas é um dos personagens mais peculiares da urbanidade brasileira, espécie de território livre onde uma ampla diversidade de classes sociais, opções de vida e geografias se cruzam harmonicamente. “Não há paralelos com outros lugares do Brasil, talvez nem do mundo. Só temo que a especulação imobiliária, que acontece em todo o país, ameace esse caráter”, avalia.

O jornalista de Augustas é interpretado pelo dramaturgo e ator Mário Bortolotto (ao lado). “Ele se envolve com empregadas domésticas, prostitutas, jornalistas e uma artista emergente, personagens abundantes na região, onde é possível viver sem precisar ir muito longe”, define o diretor.

O filme conta também com jovens nomes do teatro e do cinema, como Caroline Abras, Ana Georgina Castro, Maíra Chasseraux e Guta Ruiz, e é baseado no romance autobiográfico A Estratégia de Lilith, do jornalista Alex Antunes.

A trilha musical é formada justamente por bandas paulistas dos anos 1980, como Akira S e As Garotas Que Erraram, Fellini, Mercenárias e Patife Band. Todas têm a ver com a época em que a rua começou a consolidar seu status, embora não se apresentassem propriamente na Augusta, mas em outros pontos da região central no seu entorno.

Calçada democrática (Foto: Danilo Ramos)A via é também fonte de variadas inspirações musicais. Os migrantes gaúchos do Cachorro Grande, que a escolheram para morar, acabam de lançar um CD chamado Baixo Augusta. “Todas as músicas desse, e dos nossos últimos três álbuns, foram compostas nessa área, entre a minha casa e a do guitarrista Marcelo Gross”, conta o vocalista Beto Bruno.

Baixo Augusta é nome de uma região do bairro Cerqueira César que tem a Augusta como espinha dorsal e abrange várias de suas transversais entre a Avenida Paulista e a Praça Roosevelt, onde a rua começa, mais colada ao centro da cidade, além das paralelas Frei Caneca e Consolação. É a extremidade oposta à do lado mais rico dos Jardins, onde termina.

Cena de Augustas (Foto: Tuca Vieira/Divulgação)Beto Bruno destaca as casas de shows abertas a bandas emergentes: “Não só de São Paulo. Esse é o caso do Pub SP, do Studio SP, do Beco 203, do Inferno e da pioneira Outs. Mas também tem muito bêbado chato”, avisa. Francisco Cesar Filho acrescenta o Club Vegas, de música eletrônica, e o Sarajevo, com ambientes para música ao vivo, pista de dança e espaço ao ar livre.

O pedaço – um desfiladeiro de vaidades – concentra dezenas de salões de beleza e academias que ficam abertos a noite toda. Tem apreciadores de bate-estaca, rap e samba. Tem um bloco de Carnaval, os Acadêmicos, e seu enredo. Novos edifícios sendo erguidos e casarões tombados. Restaurantes e botecos para todo tipo de gosto e de bolso. E espaço para tribos LGBT, emos, clubers, punks, prostitutas e muita gente sem turma e sem rótulo.

A música Rua Augusta, do rapper Emicida, retrata uma prostituta fictícia, inspirada nas que fazem ponto por ali: “A maquiagem forte esconde os hematomas na alma (…) A mesma grana que compra o sexo mata o amor/ Traz a felicidade, também chama o rancor”. Mas a composição mais famosa com o nome da rua foi composta por Hervé Cordovil e se tornou um dos maiores símbolos do rock brasileiro na voz de Ronnie Cord.

Carniceria (Foto: Danilo Ramos)“Hay, hay, Johnny/ Hay, hay, Alfredo/ Quem é da nossa gangue não tem medo” ilustrava o típico rebelde sem causa, define o jornalista Marcelo Fróes, autor de Jovem Guarda em Ritmo de Aventura. “Era um jovem que tinha vindo ao mundo a passeio e queria se divertir, como seria alguém que entrasse na rua a 120 por hora.” Para Fróes, essa canção é tão marcante para o rock brasileiro como Estúpido Cupido, com Celly Campello, e Quero Que Vá Tudo pro Inferno, de Roberto e Erasmo. “Foi o primeiro rock brasileiro sem cara de versão”, acrescenta.

Vida real: meninas de todos os tipos no espaço de um enquadramento (Foto: Danilo Ramos)

Origens

As referências à rua então chamada informalmente de Maria Augusta são de 1875. Foi uma das vias abertas pelo português Manuel Antônio Vieira em sua propriedade, Chácara Capão, no bairro Bela Sintra, para facilitar o deslocamento entre o centro da cidade e o alto do Caaguaçu – um morro que ia da região da Pompeia até o Jabaquara, com um pé na margem do Rio Tietê e outro na do Pinheiros, e em cujo cume seria traçada a Avenida Paulista. Em 1914, a rua desceria ao lado oposto da Paulista, em direção à hoje chamada região dos Jardins. Seu nome, oficializado em 1927, não seria em homenagem a alguma mulher, mas uma referência de nobreza, tal qual a Rua Real Grandeza, que mais tarde viraria a Paulista. A região começava a ser projetada por engenheiros como Joaquim Eugênio de Lima para abrigar propriedades residenciais mais afastadas do “movimentado” centro.

No sentido dos Jardins, o prolongamento foi até a Rua Estados Unidos, e continuou a partir dali com o nome de Rua Colômbia. No sentido Paulista-Centro, há referências à prostituição na década de 1940. Para segregar o turismo sexual que crescia por ali, seu trecho da Martinho Prado à Rua da Consolação foi desmembrado e nomeado Martins Fontes. O trânsito de carros e ônibus cresceu muito por ali – como, aliás, por todo o centro da cidade hoje chamado de “expandido”. Entre fases de maior ou menor decadência, a atmosfera multicultural da Augusta resiste bravamente.

Resta saber que cenário restará dela quando passar a atual onda de exploração imobiliária que faz com que alguns imóveis  tenham preços superdimensionados para compra e locação nos últimos anos. “Tudo o que eu preciso tem na Rua Augusta, mas eu e minha mulher temos conversado muito sobre morar em um lugar mais tranquilo de São Paulo. O lance é que, quando você sai de casa para comprar pão e leite, encontra vários amigos no caminho, e aí já sabe…”, enrola Beto Bruno.