Segredos do Caribe

Evidências de que dinheiro que arrematou estatais no governo FHC enriqueceu gente próxima do núcleo tucano transformam livro em best-seller e a mídia em avestruz

(Foto: © Gerardo Lazzari)

No final dos anos 1990, Aloysio Biondi, aos 40 anos de profissão, era respeitado no meio jornalístico por não paparicar fontes nem políticos. Costumava guardar recortes de jornais, consultar documentos públicos de bancos, empresas, diários oficiais, fuçar balanços, fazer contas. Crítico do processo de privatizações desencadeado pelo governo de então, as portas começaram a se fechar. Suas colunas na Folha de S. Paulo foram reduzidas, e seu cachê, idem. Seus textos foram parar no extinto Diário Popular e em veículos da imprensa sindical. Antes de morrer, em julho de 2000, deixou o livro “O Brasil Privatizado”. “O balanço geral mostra que o Brasil ‘torrou’ suas estatais, e não houve redução alguma na dívida interna”, escreveu.

Esse legado investigativo foi fonte de inspiração do jornalista mineiro Amaury Ribeiro Jr., como ele credita nas primeiras páginas de “A Privataria Tucana”, lançado em dezembro. Graças à internet, o livro sobre mazelas políticas do país virou campeão de vendas no fim do ano – e promete ser determinante para a história de 2012.

Recheado de documentos públicos e obtidos em processos judiciais, a reportagem  atira para diferentes lados. E pode ter ferido de morte expoentes do PSDB, envolvidos no processo de privatização durante a década de 1990.

Que a venda de estatais foi pautada por convicções ideológicas e interesses do mercado, até os beneficiados por elas admitem. A falta de transparência, a confusão entre interesses públicos e privados e as suspeitas de irregularidades permearam o processo. Reportagens publicadas no período ofereciam farto material – em fontes oficiais, escutas telefônicas e documentos de contas em paraísos fiscais.

A mesma velha mídia que fechara portas a Biondi reagiu com silêncio sepulcral. “Quando peguei a Veja da semana e vi que não tinha nada sobre o livro (risos)… Percebi que demos um nocaute na grande imprensa, na blindagem que têm os tucanos”, disse Amaury Ribeiro Jr., em debate realizado no auditório do Sindicato dos Bancários de São Paulo, que Biondi também frequentou. O livro só foi mencionado em páginas de jornal e de revista quando apareceu entre os mais vendidos.

A investigação de Ribeiro Jr. começou em 2001, quando, recém-transferido para O Estado de Minas, em Belo Horizonte, foi encarregado de acumular material contra José Serra. A encomenda era proteger Aécio Neves, então e atual presidenciável tucano.

E o caso viria à tona em 2010, quando o jornalista foi apontado como membro de uma suposta “central de inteligência” da campanha petista pela eleição de Dilma Rousseff à Presidência da República. Ele acredita ter sido vítima de uma armação para incriminá-lo, na tentativa de criar uma “vacina” contra uma eventual publicação do livro durante o processo eleitoral.

O jornalista revela documentos que indicam pagamento de Carlos Jereissati – do grupo La Fonte, que venceu o leilão para a compra da Telemar em 1998 – a Ricardo Sérgio de Oliveira.

O ex-diretor da área internacional do Banco do Brasil e tesoureiro de campanhas eleitorais de FHC e de Serra é apresentado como “artesão” dos consórcios de privatização – trabalho para o qual teria sido remunerado “extraoficialmente”. Documentar esse papel é, na visão do próprio Ribeiro Jr., uma das novidades do livro.

O ex-governador paulista é outro dos personagens centrais, tanto por iniciativas de contratar empresas de espionagem com dinheiro público no Ministério da Saúde e no Palácio do Planalto como por ter familiares envolvidos em operações de lavagem de dinheiro. A filha Verônica, o genro Alexandre Bourgeois e o primo de sua mulher Gregório Marin Preciado são os acusados.

Outros personagens carimbados das privatizações também aparecem, e vão além da figuração. Daniel Dantas, dono do banco Opportunity e protagonista dos malfeitos investigados pela Operação Satiagraha, da Polícia Federal, em 2008, é um deles.

São descritas operações ilegais para trazer ao país dinheiro guardado no exterior. Há curiosas revelações relacionadas à sociedade entre a irmã do banqueiro, Verônica Dantas, e a xará Verônica Serra. A parceria na Decidir.com estabelece um elo umbilical entre uma figura cercada de suspeitas e o núcleo familiar do cacique tucano.

Modus operandi

Boa parte das operações descritas pelo autor segue caminho semelhante. Por meio de doleiros, recursos de provável desvio de verbas ou pagamento de propinas é remetido ao exterior. Isso aconteceu em profusão por meio do Banestado, banco estadual paranaense, liquidado em 2000 pelo Banco Central. A lavanderia operada nos quatro últimos anos de existência da instituição incluía passagem pelos Estados Unidos para, depois, aportar nas Ilhas Virgens Britânicas, no Caribe, e outros paraísos fiscais.

Na hora de trazer o recurso de volta, a chamada internalização, simula-se um investimento direto de empresa estrangeira em um empreendimento nacional. Por isso, a transação pouco comove o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) do Ministério da Fazenda, que fiscaliza essas movimentações.

Mas a farsa cai diante da revelação de que as operações nas quais os mencionados no livro se envolveram eram promovidas com a assinatura da mesma pessoa tanto na saída dos recursos do paraíso fiscal como na entrada, no Brasil. Em outras palavras, o que parecia ser o país atraindo dinheiro de estrangeiros era, de fato, uma forma de esconder a origem do dinheiro e sonegar impostos.

Mais que a necessidade de se investigar e responsabilizar pública e penalmente os artífices de eventuais ilegalidades da privataria, o livro provoca uma discussão: a do combate à permissividade da legislação brasileira com transações financeiras via offshore. O nome desse tipo de empresa instalada em paraísos fiscais tem origem, não por acaso, no termo em inglês usado para designar ilhas usadas por piratas do século 18 para guardar tesouros.

O fato é que não há motivos para um investimento com dinheiro limpo precisar passar por paraísos fiscais. Esses locais, por não exigirem comprovação de origem nem detalhamento da identidade do depositante, servem amplamente a quem precisa esconder verbas públicas desviadas, manobras de sonegação de impostos ou rendimentos do crime organizado.

No Congresso

Para proteger o país de operações ilegais e dificultar novos desvios, a discussão precisa passar pelo Congresso Nacional. O primeiro passo, porém, é a investigação. Depois da chegada aos pontos de venda, não tardou para parlamentares de diferentes legendas fazerem menção à publicação e entrar na agenda o pedido de abertura de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar o caso. O fato relevante exigido pela Constituição para levar adiante a CPI da Privataria está nos documentos contidos no livro. As 185 assinaturas – 14 a mais do que o mínimo de um terço dos 513 membros da Câmara Federal – colhidas pelo deputado Protógenes Queiroz (PCdoB-SP) incluem gente de todas as colorações partidárias.

Embora os líderes do governo, Cândido Vaccarezza (PT-SP), e do PT, Paulo Teixeira (SP), tenham preferido não assinar para manter a “neutralidade” que a relação com outras legendas exige, 67 petistas subscreveram. A seguir, estão os governistas PMDB e PSB (18 cada), PDT (17), PR (15) e PCdoB (13). Alguns oposicionistas – DEM (5), PSDB (4) e PPS (4) – também aderiram.

No lançamento do livro, organizado pelo Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé na sede do Sindicato dos Bancários, Protógenes afirmou que a iniciativa visa a proteger a integridade física do autor do livro. “Não poderíamos demorar muito para não perder o ‘timing’ e perder o Amaury”, lembrou. O jornalista corria o risco de “virar estatística”, segundo termos do delegado, “sofreria um ‘assalto’, diriam que reagiu”.

A expectativa é de que o presidente da Casa, Marco Maia (PT-RS), instale a comissão em fevereiro, depois do recesso. “Se a CPI for mesmo aberta, vou avisar que o que está no livro é pequeno”, adiantou Ribeiro Jr. O ano novo promete.

Colaboraram Vitor Nuzzi e Paulo Donizetti de Souza

 

Reações e não reações na mídia

Pseudo-jornalismo arcaico

De pronto tropeço em duas razões para o costumeiro silêncio ensurdecedor da mídia nativa. A primeira é tradição desse pseudojornalismo arcaico: não se repercutem informações publicadas pela concorrência. Tanto mais quando saem nas páginas impressas por quem não fala a língua dos vetustos donos do poder e até ousa remar contracorrente. A segunda razão é o próprio José Serra e o tucanato em peso. Ali, ai de quem mexe, é a reserva moral do País.

Mino Carta, revista CartaCapital

Censura combinada

Em 47 anos de trabalho nas principais redações nunca tinha visto nada igual, nem na época da ditadura, quando a gente não era proibido de escrever, apenas os censores não deixavam publicar. Foi como se todos houvessem combinado que o livro simplesmente não existiria. Esqueceram-se que o mundo foi revolucionado por um negócio chamado internet, em que todos nos tornamos emissores e receptores de informações, tornando-se impossível esconder qualquer notícia.

Ricardo Kotscho, TV Record e portal R7

Moralidade seletiva

A grande mídia, que tem se especializado em denúncias em torno de figuras públicas envolvidas em supostas atividades de corrupção, ao ignorar um livro que documenta uma ação que envolve homens públicos e montantes inacreditáveis de dinheiro, coloca em risco sua credibilidade. Revela quando interessa e omite quando não interessa à posição político-partidária que assume. A internet e a blogosfera quebram o monopólio da formação de opinião.

Venício Lima, Observatório da Imprensa

Justiça para todos

O primeiro atributo dos julgamentos morais é a universalidade. Espera-se que tratem casos semelhantes de forma equivalente. Quando tal simetria se quebra, então os gritos moralizadores começam a soar como astúcia estratégica submetida à lógica do ‘para os amigos, tudo, para os inimigos, a lei’. O povo brasileiro tem o direito de saber o que realmente aconteceu. O Brasil será melhor quando o ímpeto investigativo atingir a todos de maneira simétrica.

Vladimir Safatle, professor de Filosofia da USP

Propaganda política

A chamada ‘grande imprensa’, por ter mais responsabilidade que os blogueiros ditos independentes, mas que, na maioria, são sustentados pela verba oficial e fazem propaganda política, demorou mais a entrar no assunto, ou simplesmente não entrará, porque precisava analisar com tranquilidade o livro para verificar se ele realmente acrescenta dados novos às denúncias sobre as privatizações, e se tem provas.

Merval Pereira, O Globo

Perda de critério

À perda de critério jornalístico se somaram intenções comerciais e políticas dos grupos jornalísticos. Como justificar o escândalo em torno de um avião alugado que transportou o Lupi, a denúncia de que Orlando Silva recebeu dinheiro na garagem e ignorar documentos levantados por Amaury Ribeiro Jr.? Os argumentos de Merval Pereira foram uma tentativa desesperada de convencer o procurador geral da República de que há critério jornalístico que impede que os jornais divulguem o livro.

Luis Nassif, jornalista