A estética do perigo

A cada dia novos cosméticos prometem milagres. Mas será?

Alice: cremes prometiam pele firme, lisa, uniforme e elástica. Depois da terceira aplicação, sensação de queimadura. (Foto: Regina de Grammont)

Pele bonita, macia, livre de manchas e de rugas. Cabelos saudáveis, sedosos, brilhantes e sem caspa. Corpo sem estrias, celulite nem gordura localizada. As promessas fazem a alegria das agências de publicidade e mídias – as que anunciam os produtos e as que vendem em sua programação uma ideia de felicidade movida a cremes, xampus, maquiagem. Para deleite dos mais vaidosos, o arsenal aumenta a cada dia. Dados da Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos mostram que o faturamento do setor nos últimos cinco anos cresceu 56%. No Brasil, há mais de 1.600 empresas – e 20 delas faturam acima dos R$ 100 milhões. Feitos para causar elogios e embelezar até a autoestima, os cosméticos não são tão inofensivos como acreditam consumidores ávidos por uma aparência de capa de revista. Podem, sim, causar problemas.

Segundo a Sociedade Brasileira de Dermatologia, entre os fatores que mais levam pacientes irritados aos consultórios estão substâncias aromatizantes. Há ainda muitas pessoas que recorrem aos sites de reclamação, relatando experiências ruins inclusive com marcas importantes.

No ano passado, uma denúncia pôs em dúvida a segurança de esmaltes. A associação de consumidores  Proteste denunciou a presença de substâncias nocivas, como tolueno, furfural, nitrotolueno e dibutilftalato. A legislação brasileira não tem referências para os dois primeiros solventes nem define limites seguros para os últimos. O dibutilftalato foi banido na Europa. São substâncias causadoras de câncer em animais utilizados em pesquisas de laboratório. Na época, os fabricantes Colorama, Risqué e Impala alegaram produzir conforme as normas. O Ministério Público Federal abriu inquérito para investigar.

A segurança dos cosméticos depende do cumprimento de normas como a utilização de ingredientes aprovados mundialmente, a realização de testes em seres humanos, e o funcionamento de um serviço de qualidade capaz de rastrear toda a cadeia produtiva, da procedência das matérias-primas ao uso pelo consumidor. “A questão é se há fiscalização suficiente para um setor complexo e em franca expansão. Muitas vezes a Anvisa nem sabe que o produto existe”, afirma Greyce Lousana, da Sociedade Brasileira de Profissionais em Pesquisa Clínica.

Cabe à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) registrar os produtos e apurar denúncias de irregularidades. A enfermeira Rosemary Ferreira, pós-graduada em Saúde Pública e em Gestão Ambiental, atua em Diadema, no ABC paulista, polo com mais de 30 fabricantes e outros 50 fornecedores de insumos. “Muitos já foram interditados”, afirma.

Em Cajamar (SP), também há várias empresas do setor. Elisabete Barbosa, da Diretoria de Saúde do município, conta que a fiscalização consiste de visitas periódicas, diligências sem prévio aviso e inclui o acompanhamento de reações adversas e de relatórios de atendimento ao consumidor. Mas, como o tempo entre a reclamação e a inspeção pode ser longo, a recomendação é de que a queixa seja registrada tanto no serviço do fabricante como na vigilância sanitária da localidade onde está instalada a indústria. “Se ninguém reclamar, não saberemos se o problema é individual ou comum a muita gente”, alerta.

Falta rigor

Outro aspecto apontado por analistas do setor é que as normas são frouxas. Augusto Ferraz, vice-presidente da Associação Brasileira de Apoio e Proteção aos Sujeitos da Pesquisa Clínica, afirma que em sua atuação como consultor no segmento já viu fraudes em experimentos de grandes indústrias. “Os médicos que testam cosméticos em pacientes ganham menos que os que testam medicamentos e acabam fazendo diversas pesquisas simultâneas, para compensar. O mesmo paciente pode estar testando rímel, blush e produto para peeling”, diz. “Assim fica difícil saber qual deles pode ter causado uma reação.”

Na observação de Ferraz, embora os cosméticos não representem perigo à saúde na mesma proporção que um medicamento, há produtos que podem causar grandes danos.

Para melhorar a cútis, a autônoma Alice Hatsue Seino, de São Paulo, recorreu a cremes da Natura que prometem pele firme, lisa, uniforme e elástica. Depois da terceira aplicação, seu rosto inchou e a sensação era de uma queimadura. Isso em fevereiro de 2009. Procurou então o serviço de atendimento ao consumidor e foi encaminhada a um dermatologista, que constatou alergia no rosto e reação secundária nos quadris e a medicou. Testes feitos dias depois confirmaram sensibilidade ao produto. Um segundo medicamento foi prescrito para combater as lesões que se alastraram. Como não desapareceram, dois meses depois ela voltou a procurar a empresa.

Quando Alice conseguiu passar em consulta, com o mesmo médico, as lesões tinham se agravado. Ele se negou a voltar a atendê-la e a declarar o nexo causal entre o produto usado e a alergia. Ao procurar a ouvidoria, foi informada de que a Natura não tomaria providências. “Devido às lesões, não pude realizar a cirurgia para correção de um prolapso uterino”, conta. Nos meses seguintes, enfrentou reações inéditas à vacina contra gripe, à exposição ao sol e a produtos usados no tratamento dentário. Em maio do ano passado, Alice entrou com ação por indenização por responsabilidade civil e por danos morais contra o fabricante.

Por meio de sua assessoria, a Natura afirmou que avalia sistematicamente as matérias-primas e seus produtos antes de colocá-los no mercado e testa a eficácia e segurança conforme exigências da Anvisa e do Ministério da Saúde. Ressalva que, apesar de todo esse cuidado, é sabido que todo produto pode estar associado a efeitos indesejáveis e que reações adversas a cosméticos são raras e normalmente associadas ao uso incorreto. E argumenta que algumas pessoas são suscetíveis a reações, sendo as mais comuns irritação e alergia de contato, que considera quadros inespecíficos e possíveis de serem desencadeados por inúmeros fatores, como substâncias presentes no dia a dia, e não especificamente cosméticos.

Greyce Lousana concorda que muitos problemas são causados pelo uso impróprio, como aplicação diária de um creme indicado para uso semanal. Ou armazenamento inadequado na casa do consumidor ou no estoque do distribuidor. Mas chama a atenção para um aspecto que, segundo ela, precisa ser resolvido pela indústria: a falta de adequação das fórmulas às diferenças de clima e temperatura. “Uma substância que se conserva bem em regiões de clima mais ameno pode deteriorar-se rapidamente em cidades mais quentes.” E o mesmo produto é vendido em todo o território nacional. Isso quando não vem importado da Europa.