A câmara fria
De três em três minutos ela tossia. Tosse seca. Na parede o anúncio vistoso da missão da empresa: “A saúde em primeiro lugar”
Publicado 17/01/2012 - 13h01
Calculei pela lisura do seu rosto e pelo brilho do seu olhar que deveria ter menos de 30 anos. Depois saberia que já passava dos 40.
Sua tez branquíssima e aveludada parecia uma extensão do traje branco. Bela mulher, tipo mignon, bonita de rosto e esbelta de corpo. Olhos negros; cabelos em coque, para não estorvar os movimentos, firmes e elegantes.
Nenhum sinal de moleza ou morbidez. Exceto essa enigmática tosse. Deve ser um pigarro, pensei, uma irritação momentânea da faringe. Isso passa.
— Você é médica ou enfermeira? — perguntei.
— Sou médica — ela disse, sorrindo. E tossiu.
Estávamos num laboratório chique, de um hospital dito o mais moderno da cidade. Eu já me submetera a vários exames do coração, mas nunca a esse tal de ecodoppler. Ali dentro fazia um frio de matar pinguim. Sentia-me dentro de uma câmara frigorífica.
— Você não se ressente do frio? — perguntei.
— Já me acostumei — ela disse. E tossiu.
Devagar, ela ia passando no meu tórax, com a mão esquerda, um bastão provido de um sensor untado de vaselina. Ao mesmo tempo acompanhava o desenho que se modificava continuamente na tela do computador. Ia e vinha, ia e vinha o bastão melado de vaselina. Eu tiritava de frio. Os pelos dos braços arrepiados. De vez em quando ela apertava com a mão direita uma tecla do computador e a imagem ficava estática.
— Então, vou morrer logo? — perguntei, brincando.
— Nada disso, o senhor vai viver muito, nenhum sinal de anomalia no músculo, nem no ritmo do miocárdio, nenhuma lesão, nada — ela disse, sorrindo. E tossiu.
— E esse aparelho é bom mesmo? — perguntei.
— O melhor que existe hoje no Brasil. É de última geração. Aqui em São Paulo o nosso hospital é o único que tem. Caríssimo — ela disse. E tossiu.
— Americano?
— Não, é alemão; em equipamento hospitalar ninguém bate os alemães — ela disse. E tossiu.
— E você tem muita experiência em ler essas imagens?
— Bastante, me especializei em ecodoppler; faço os exames desde que o aparelho chegou, há um ano — ela disse. E tossiu.
— Quantos exames por dia você faz?
— Faço de 14 a 20, já teve dia que fiz 25 — ela disse. E tossiu.
— Tanto assim?
— Precisa, se não fizer, não paga o custo do aparelho; os médicos do hospital têm orientação de sempre mandar fazer — ela disse. E tossiu.
— E essa tosse, está resfriada? — perguntei.
— Não, é essa temperatura baixa aqui dentro.
— E por que tão baixa?
— É para proteger o aparelho. A saúde do aparelho sempre em primeiro lugar — ela disse.
E tossiu.