Ônibus Hacker na estrada

Ativistas cobram transparência do poder e participação política via novas tecnologias

Ônibus custou R$ 58 mil captados em “vaquinha” (Foto: Bruno Fernandes)

O estacionamento do Museu de Arte Moderna (MAM) carioca foi cenário de um novíssimo gênero de invasão hacker. Em vez de rede de computadores ou sites de governos, a Comunidade Transparência Hacker, formada por ciberativistas, comprou um ônibus para invadir cidades e transformar realidades locais. A ideia é realizar oficinas e debates sobre transparência pública e participação política por meio da rede e das novas tecnologias. Pintado, grafitado­ e com bancos a menos no fundo para criar espaço de debates, o Ônibus Hacker fez sua primeira viagem em dezembro, ao Rio de Janeiro, para a terceira edição do Festival CulturaDigital.br. A reportagem da Revista do Brasil acompanhou.

Comprado por R$ 58.593, com doações de quase 500 pessoas por meio do Catarse – plataforma de financiamento on-line –, o ônibus levou mais de 30 hackers de São Paulo. Em breve deve ganhar um GPS, para mapear os caminhos, e um roteador 3G, para garantir acesso à internet aos ciberativistas e seus laptops, tablets, celulares e smartphones. O grupo se lançou a partir de 2009 numa cruzada para tornar acessíveis informações de interesse público. De lá para cá foram muitas hackeadas. Começaram pelo Blog do Planalto, da Presidência da República, para abrir um espaço de comentários que não havia.

Depois, no serviço de reclamações da Prefeitura de São Paulo, tornaram possível analisar informações como quantidade e origem das solicitações e o acompanhamento do atendimento – ou da falta dele. E o bando foi se animando.

Outra atividade central da comunidade hacker é o Transparência Hackday, mutirões tecnológicos que ocorrem em todo o país. “Os encontros são organizados de maneira colaborativa, autônoma e descentralizada”, disse Pedro Markun, um dos fundadores. Neles, ativistas on-line trabalham horas a fio, ou durante dias seguidos, para clonar sites de governos e desenvolver aplicativos com o objetivo de dar transparência a processos políticos.

Em dois anos o grupo saltou de 120 para cerca de 800 integrantes, todos conectados­ em uma lista na internet. E os feitos também não foram poucos. Além de realizar o sonho de comprar um ônibus, com pouco tempo de vida, já participaram de importantes debates, como o da Lei de Acesso à Informação (12.527), sancionada recentemente pela presidenta Dilma Rousseff. “Participamos da construção do texto da lei”, ressalta Markun. 

Um desdobramento dessa ação é o site Queremos Saber – queremossaber.org –, onde é possível cadastrar pedidos de informações públicas e encaminhá-las a órgãos governamentais. A ideia foi inspirada­ no site inglês whatdotheyknow.com, que tem o mesmo objetivo. Seguindo a lógica de abertura que permeia todas as ações do grupo, o portal pretende tornar públicos os pedidos, as respostas e, claro, a falta delas. Markun, entretanto, é cuidadoso ao falar do futuro. “Estamos amadurecendo nossas ações, gradativamente. Afinal, mexemos com uma coisa complexa­ e obscura, que é a política.”

Celebração e vaias

Ana de Holanda (Foto: Wilson Dias/ABr)

Depois de duas edições na Cinemateca, em São Paulo, com o nome de Fórum da Cultura Digital, foram programadas duas edições do agora Festival Internacional CulturaDigital.br no Rio, em versão repaginada. Segundo o jornalista Rodrigo Savazoni, diretor-geral do evento, apesar das dificuldades enfrentadas durante 2011, o ambiente do encontro na Cidade Maravilhosa foi de celebração.

Com o mesmo espírito hippie que marcou os anos anteriores, a edição carioca uniu toda a diversidade que compõe a cena digital no mundo. “O objetivo é refletir nossa era, com sua potência de liberdade e dinâmica de controle”, disse Savazoni.

Entre os internacionais, um dos destaques foi o professor de Harvard, e teórico das redes, Yochai Benkler, que abriu o evento em debate com o músico e anfitrião do festival, o ex-ministro Gilberto­ Gil. Outra participação que chamou a atenção foi a do escritor Paulo Coelho.

Via teleconferência, o bruxo das letras defendeu as licenças abertas. Aliás, todos os livros do autor podem ser baixados gratuitamente em seu blog. “Uma ideia consistente não precisa de proteção. O resto é ganância ou ignorância”, afirmou Coelho, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL).

Além de debates, o festival teve dezenas de atividades. Lounge, experimentações visuais, apresentações de projetos e um laboratório onde era possível encontrar gambiarras insólitas (para os mais leigos), como uma impressora de objetos.       

O ator Sérgio Mamberti, secretário de Políticas Culturais do Ministério da Cultura (MinC), procurou ressaltar o quanto a gestão da ministra Ana de Hollanda está alinhada com as políticas das gestões anteriores, que tiveram à frente Gilberto Gil e depois Juca Ferreira.

Segundo Mamberti, as diferenças fazem parte de uma visão reformulada, sobretudo da secretaria que ele dirige. Em resumo, o estilo Ana de Hollanda, ao contrário do que muitos afirmam, não se opõe às políticas lançadas por Gil e Juca.

Mamberti não convenceu muito. Sobretudo quando leu uma carta da ministra para uma plateia de aproximadamente 500 pessoas, que lotaram o Cine Odeon, no centro do Rio. Uma vaia renitente quase o impediu de concluir. “Não nos representa”, gritavam. Nos bastidores, Rodrigo Savazoni procurava amenizar o estrago: “Pensei que seria pior”.

O secretário disse à reportagem da RdB que a cultura digital tem papel estratégico para o MinC, assim como a regulamentação do Plano Nacional de Cultura (PNC), com 61 metas para os próximos anos. O PNC será complementado a partir de 2012 com a criação do Serviço Nacional de Informações e Indicadores Culturais (SNIIC), na plataforma da rede CulturaDigital.br, formada por especialistas, redes de coletivos culturais e ativistas. “Será um sistema de monitoramento, alimentado pela sociedade, fundamental para a avaliação do processo cultural brasileiro.”

Outro impulso à cultura deve vir por meio do Programa Brasil Criativo, da Secretaria de Economia Criativa. A ideia, de acordo com Mamberti, é colocar a cultura dentro de um projeto de desenvolvimento sustentável. “Durante o próximo Fórum Social Mundial (de 24 a 29 de janeiro, em Porto Alegre), vamos propor que a cultura seja colocada como o quarto pilar do desenvolvimento sustentável”, afirma Mamberti. A proposta é parte de uma articulação que visa à participação do MinC no evento Rio+20, a ser realizado este ano.

Direito autoral: raios e trovões

Em 2012, o digital deverá ocupar o centro de outro importante debate. Uma convenção internacional sobre direitos autorais e comunicação digital será promovida pela Unesco, segundo informou o órgão na mais recente Reunião dos Ministros da Cultura do G-20 no Fórum D’Avignon. O anfitrião do encontro, em novembro, foi o presidente francês, Nicolas Sarkozy. Sérgio Mamberti considerou o evento um indício de que definições sobre o tema em âmbito internacional estão a caminho.

A questão dos direitos autorais, pauta do encontro na França e de muitas discussões no Rio, é pedra no sapato da ministra Ana de Hollanda, apontada como defensora do Ecad, entidade responsável pela arrecadação de direitos autorais. Para piorar, antes mesmo de esquentar a cadeira à frente da pasta, Ana retirou do site do ministério o selo Crea­tive Commons, licença aberta que permite o uso livre do conteúdo na internet, sinal de que uma mudança de rumo se iniciava – e de intensas turbulências no setor.

Interrompeu também o debate da reforma da lei de direitos autorais, iniciado em 2007, que havia chegado a uma primeira proposta de revisão, encaminhada à Casa Civil em dezembro de 2010.

Apesar do fogo intenso, a ministra se manteve firme no cargo, e até o fechamento desta edição ninguém arriscava­ uma aposta sobre sua permanência após a reforma ministerial prevista para a segunda quinzena deste janeiro. Para Mamberti, o saldo do ministério é positivo e deve evitar uma substituição.

Outra incerteza circulava pelas rodas de conversas durante o festival de cultura digital. O texto final da Lei de Direitos Autorais encaminhada finalmente à Casa Civil representa avanço ou retrocesso? Há quem diga que avança em relação à Lei 9.610, de 1998, atualmente em vigor, mas retrocede se comparado ao elaborado na gestão Gil/Juca Ferreira.

Um dos pontos positivos, na opinião de José Murilo, coordenador de Cultura Digital do MinC, é a criação de um registro de obras, uma plataforma para centralizar tudo o que é produzido com uma licença pública acoplada. “Ao registrar sua obra, o autor definirá que tipo de proteção deverá ter”, diz. Porém, o texto que estava pronto para ser encaminhado ao Congresso vazou. Descobriu-se que o que seria um tipo de Creative Commons do governo não constava. Para azedar, em nota técnica encaminhada à Casa Civil, o MinC defendeu o uso do modelo norte-americano notice and takedown (notificação e retirada) – dispositivo extrajudicial que permite a retirada de conteúdos da internet por titulares de direitos.

“O provedor terá de remover o conteúdo­ e notificar o usuário que publicou a obra. Dessa forma, se isenta de responsabilidade por danos decorrentes de eventual violação de direito autoral”, explica o advogado­ Pedro Paranaguá, da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

O imbróglio tende a aumentar. O Ministério da Justiça, presente em debates do festival, é contra o sistema de notice and takedown, por não se alinhar ao Projeto de Lei do Marco Civil da Internet, que tramita no Congresso. O MinC argumenta que um mecanismo de notificação por meio do Judiciário pode vir a onerar o usuário, que teria de contratar advogado para sua defesa. Resta aguardar os próximos capítulos.

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Entrevista:

Coração hacker

Anfitrião e embaixador do festival, Gil defende cultura digital transformadora

Gil (Foto: Bruno Fernandes)O compositor Gilberto Gil, o ministro “hacker” da Cultura, está­ por trás do discurso e da poesia que impulsionaram a cultura digital no Brasil. A tecnologia já estava presente em sua obra, e durante sua passagem pelo governo Lula suas ideias começaram a se concretizar também na esfera política, na forma da primeira coordenação de cultura digital dentro do MinC.

Hoje ele assiste ao crescimento das sementes lançadas, como anfitrião e embaixador do Festival Internacional CulturaDigital.br. Gil conversou com a Revista do Brasil e defendeu a “ética hacker”, uma cultura para a transformação da humanidade. 

Você ficou conhecido como ministro “hacker”. Afinal, o que é um hacker?

É difícil dizer. Hacker é uma pessoa com inteligência, sensibilidade e coração dedicados a prospectar possibilidades, tentar decifrar sistemas, processos, em nome do conhecimento, do aumento da capacidade cognitiva do homem. Com o aumento da capacidade cognitiva, aumenta a capacidade de intervenção naquilo que é possível, e necessário, para que humanidade progrida, e para que progridam os indivíduos dentro da humanidade. É essa a mentalidade hacker.

Então, somos todos hackers?

Todo homem é um hacker, pelo menos em potencial. Se não é, propriamente e plenamente, voltado para isso é por uma outra questão, por algum outro problema, mas todos somos, a princípio, um instrumento para a intensificação da condição humana no universo, seja através da continuação, da manutenção desse modo de ser humano que temos hoje, seja na crença da possibilidade de novas formas que estão aí à frente, no futuro. Eu sou um hacker. A ética hacker se aplica a qualquer campo de atividade, de ação, reflexão, a qualquer campo de compreensão sobre a vida.

No debate com (o professor) Yochai Benkler, você questionou contribuições da religião à cultura digital. 

Eu acredito que a religião tenha a contribuir, sim, à medida que a compreensão da dimensão religiosa, que o entendimento sobre as relações da divindade e de sua relação com o humano esteja a serviço de uma humanidade mais aberta, mais profunda, mais zelosa dos seus indivíduos e de suas coletividades. Nessa medida as religiões servem, como serve qualquer outro instrumento. Quando as religiões caem em mãos de interesses… (pausa) que não sejam esses (risos), aí é outra coisa, que são os usos privatistas e particularistas da religiosidade.

Você afirmou que os Pontos de Cultura eram uma popularização da cultura digital. Como avalia o momento atual desse programa?

Conseguiu-se chegar a 3.500 Pontos de Cultura, e a ideia é que se possa fazer muito mais. O Brasil é um território imenso, as comunidades que precisam desse tipo de impulso são muitas, mas de qualquer maneira a ideia é também que a instalação dos pontos seja ela própria um fator multiplicador da existência deles, que os próprios pontos passem a estimular a existência de outros. Que a iniciativa pública do programa ministerial não seja uma camisa de força, não prenda o sistema, não deixe as pessoas dependentes. Os Pontos de Cultura precisam andar por si próprios. Muitos já nasceram dessa multiplicação espontânea. Foi um programa bonito do Ministério da Cultura, que agora deve ser da sociedade brasileira, ou do mundo. Já tem pontos na Itália, Tunísia, Argentina, Estados Unidos, Japão. Os Pontos de Cultura estão por aí.