O tango reconquista o Brasil

Um dos principais símbolos da cultura argentina, o tango se renova e ganha adeptos. Há até quem garanta que ele nasceu por aqui

Ney Homero e Maria Christina acertam o passo (Foto: Luciana Whitaker)

Mais do que a presidenta reeleita, Cristina Kirchner, e o jogador Lionel Messi, o tango ainda é o principal ícone argentino no Brasil. O ritmo lota casas de espetáculos e está cada vez mais presente nas academias de dança. “A comunidade do tango é pequena em relação à população brasileira, mas está em expansão. É dedicada, apaixonada e responsável, formada por gente experimentada na vida e que sabe o que quer”, garante o dançarino Alan Forte, professor de uma academia em São Paulo. Natural de Buenos Aires, ele está na capital paulista desde 2010, e sempre viaja pelo mundo com o objetivo de ensinar a dança. Em 2011, esteve na França, Itália e Espanha.

Segundo estimativa do empresário e pesquisador Ney Homero da Silva Rocha, também dançarino, há atualmente cerca de 300 praticantes no Rio de Janeiro, número próximo do de São Paulo. Também existem dezenas deles em cidades como Curitiba, Florianópolis, Porto Alegre, Brasília, Belo Horizonte, Fortaleza e Uberaba. “Há 25 anos, quando comecei, não havia espaços especializados por aqui. E os praticantes contavam-se nos dedos”, observa o autor do livro Tango, uma Paixão Portenha no Brasil e responsável pelo site Bardetango.

Alan Forte considera a dança muito funcional e um meio fraterno de fazer amigos. “Também permite o relacionamento entre homem e mulher, com um jogo preestabelecido, que é abraçar e dançar. Ajuda muitas pessoas a voltar a cuidar da própria imagem e a se sentir melhor”, acredita. E acrescenta que já existem escolas e orquestras especializadas para o estudo do tango, musicalmente rico na melodia e no ritmo.

Mesmo para quem considera não ter habilidade para dançar, ou interesse, o prazer de assistir a uma apresentação é incontestável. É mais comum ver brasileiros lotar as casas de shows na capital argentina do que encontrar hermanos nos nossos sambódromos. O espetáculo Uma Noite em Buenos Aires é apresentado há mais de 30 anos e praticamente em todos tem uma temporada no Brasil, com direção do maestro Carlos Buono e produção de Manoel Poladian, um dos maiores empresários de shows do país.

Além de professores, dançarinos profissionais e aspirantes, existem no Brasil vários grupos dedicados à prática da música propriamente dita. O LiberTango surgiu em 1996, com a intenção de homenagear um dos maiores nomes da história – o compositor argentino Astor Piazzolla, nascido em Mar del Plata (1921-1992).

Marcelo Rodolpho e o acordeom do LiberTango (Foto: Luciana Whitaker)
Marcelo Rodolpho e o acordeom do LiberTango (Foto: Luciana Whitaker)

“Minha mãe, pianista argentina, se juntou a meu irmão Alexandre Caldi (sax e flauta) e a Marcelo Rodolfo (foto) com a livre e espontânea vontade de explorar a obra de Piazzolla, da qual é profunda conhecedora. Eles formaram o Astor Piazzolla Trio, que se apresentou pela primeira vez há 15 anos, no Museu Villa-Lobos, no Rio de Janeiro. Em 2000, entrei no grupo com o meu acordeom, e assim nasceu o LiberTango”, conta Marcelo Caldi, que toca acordeom.

“Música boa, seja tango, seja qualquer outra, é a mesma em todo lugar do mundo. O público só aplaude aquilo de que realmente gosta. Mas ainda não há muito diálogo musical entre Brasil e Argentina, o que é um pecado. Lá eles conhecem a gente, admiram nosso país. Aqui pouco se conhece dos músicos de lá. O Brasil não se relaciona culturalmente com os países latinos de uma maneira geral. Nosso olhar está voltado para fora do continente”, lamenta Marcelo.

Será?

De acordo com Ney Homero, o tango não nasceu na Argentina. “Nasceu no Brasil, e foi resultado da mistura de muitos gêneros e ritmos europeus com o batuque dos negros, no candomblé, entre 1850 e 1895. No início, era semelhante ao chorinho. Por aqui, porém, ganhou um andamento mais ligeiro, visando ao samba. Na Argentina, trocou os instrumentos de percussão pelo piano e, em 1910, pelo bandoneón, instrumento surgido na Alemanha parecido com o acordeom, da mesma família da concertina. Já a música recebeu influência do canto lírico italiano e passou a enfatizar os tempos fortes, criando uma característica regional”, destaca. Segundo ele, a fama mundial do tango argentino se deve ao fato de ter sido apresentado na França, em 1910. “Levado a Paris, lá se consagra e é aceito como gênero musical típico da Argentina. A partir dali, é espalhado pelo mundo.”

Alan Forte tem outra tese: “Foi uma criação cultural coletiva, com origem em todos os continentes. Por uma necessidade de expressão, as pessoas começaram a dançar tango em Buenos Aires. Não existem certezas quanto ao ano, mas acredita-se que entre 1850 e 1880”. A denominada época de ouro do tango aconteceu por volta da década de 1940, com nomes como Osvaldo Fresedo, Juan D’Arienzo e Francisco Canaro, que gravou com a cantora brasileira Dalva de Oliveira sucessos como Tristeza Marina, Madreselva e Uno. Logo em seguida, porém, Astor Piazzolla retorna dos Estados Unidos, onde passou a infância, muito influenciado pelo jazz, e tenta modernizar aquela música tão tradicional, o que é alvo de grande resistência.

“Piazzolla representou uma ruptura na estrutura tradicional do tango, introduzindo elementos do jazz e da música clássica. Gosto de comparar ao que aconteceu no Brasil com Tom Jobim, através da bossa nova. Inicialmente, houve resistência, mas depois o gênio foi merecidamente reconhecido”, avalia Marcelo Caldi. Uma curiosidade é que, aos 13 anos, Piazzolla foi convidado por Carlos Gardel, um dos nomes mais tradicionais do tango, a excursionar com ele e a interpretar um garoto no filme El Día Que Me Quieras, de 1935.

Outra renovação marcante no tango ocorreu em 1999, quando surgiu o grupo Gotan Project, formado pelo francês Philippe Cohen Solal, o argentino Eduardo Makaroff e o suíço Christoph H. Müller, que mistura o ritmo portenho a elementos da música eletrônica. Em 2001, os rapazes lançaram um álbum, com o título provocativo La Revancha del Tango. Na mesma linha, há o Bajofondo, composto por músicos argentinos e uruguaios, conhecido no Brasil pela Pa’ Bailar,  tema de abertura da telenovela A Favorita. “Esse novo tango abriu as portas para jovens dançarem tango. Só que, quando começam, eles se envolvem mesmo é com as velhas canções”, diz Alan Forte.

Nos últimos anos, ganhou destaque mundial o Café de los Maestros, mais tradicional. Trata-se de iniciativa semelhante à do grupo cubano Buena Vista Social Club, formado por antigos músicos que se reuniram ao ser descobertos pelo guitarrista e compositor norte-americano Ry Cooder e pelo cineasta alemão Wim Wenders, que dedicaram a eles um documentário em 1999. “É uma dessas tentativas de manter vivo o tango na cabeça das pessoas, resgatando os maestros que fizeram parte da história musical da Argentina. Mas acredito também que eles sejam apenas parte de todo um movimento que vem acontecendo de revitalização do tango, a partir de alguns músicos da nova geração preocupados em preservar esse patrimônio cultural”, observa Marcelo Caldi.

Curiosamente, por trás do Café de los Maestros e do Bajofondo está a influência do músico e compositor argentino Gustavo Santaolalla, vencedor de dois Oscars pelas trilhas dos filmes O Segredo de Brokeback Mountain (2005), de Ang Lee, e Babel (2006), de Alejandro Iñarritu.