Viva Noel Nutels!

Tenho visto ex-comunistas tão anticomunistas que fico lembrando deles quando babavam de ódio de quem dissesse que a União Soviética não era o paraíso da classe operária

(ilustração: © Vicente Mendonça)

Viva Noel Nutels!

Tenho visto ex-comunistas tão anticomunistas que fico lembrando deles quando babavam de ódio de quem dissesse que a União Soviética não era o paraíso da classe operária. Uma parte da esquerda criticava o “socialismo de Estado” praticado na União Soviética, mas achava que o regime e o sistema evoluiriam rumo a um socialismo democrático, mais para um socialismo de verdade, e não que recuassem para um capitalismo selvagem.

Diante de qualquer crítica, certos caras babavam de ódio, considerando-nos uns pervertidos a serviço da direita. Só que o discurso atual deles procura dar a impressão de que sempre foram críticos daquele tipo de socialismo e nós, que continuamos de esquerda, é que éramos os fanáticos defensores do regime. É muita cara de pau.

Lembro que nem sequer se podia contar a eles qualquer piada sobre a União Soviética. Sempre citei para eles dois exemplos de comunistas bem-humorados, gozadores, divertidos e, nem por isso, menos de esquerda, que foram o glorioso Barão de Itararé e o médico Noel Nutels. Há uma piada daquele tempo que era motivo de briga – nem tem graça hoje, valia naquele contexto, mas eu ri quando ouvi.

Um português resolveu abrir uma padaria em Moscou. Chegou lá num sábado. No domingo, foi passear pela cidade, viu uma fila enorme para entrar no Mausoléu de Lenin. Resolveu conhecer o tal mausoléu e ficou impressionado com o que imaginava que haviam gastado para construí-lo. Comentou com um sujeito ao seu lado:

— Que desperdício de dinheiro! Com o que gastaram nessa porcaria eu abria uma rede de padarias em Moscou. O sujeito ao lado era da KGB, a polícia secreta soviética, e o destino do Manuel foi a prisão. Passou um ano na Sibéria, para “reeducação”. Lá, nos intervalos entre os trabalhos forçados, estudou a Revolução Russa.

Quando voltou a Moscou, abriu a padaria e, para não ter mais problemas com a KGB, colocou na parede grandes fotos dos três maiores líderes da revolução: Lenin, Trotski e Stalin. Logo nos primeiros dias de funcionamento da padaria, apareceu lá um outro agente da KGB. Olhou as fotos e estremeceu quando viu a de Trotski. Virou-se para o Manuel e disse:

— Tire a foto daquele porco da parede!

Ingenuamente, Manuel perguntou:

— Qual dos três?

Mais dois anos na Sibéria.

Aí o Manuel voltou, reabriu a padaria e procurou entender melhor como as coisas funcionavam na União Soviética.

Para eliminar de vez qualquer risco, entrou para o Partido Comunista e cumpria tudo o que era esperado de um filiado. Até que faltou a uma reunião. Passados uns dias, entrou um membro do partido na padaria e perguntou:

— Manuel, por que você não foi à última reunião do Partido?

O Manuel não vacilou:

— Baein… Se eu soubesse que era a última…

Mais um monte de anos na Sibéria. 

Noel Nutels (1913-1973) nasceu na Ucrânia, que fazia parte da antiga União Soviética, veio para cá e tornou-se um grande brasileiro, totalmente dedicado a resolver problemas de saúde da população, especialmente dos índios. Viveu mais entre eles do que na “civilização”, e muita gente pensava que ele era antropólogo. Certa vez, numa festa no Rio de Janeiro, uma daquelas mulheres da dita alta sociedade, emperiquitada e cheia de joias, foi conversar com ele:
— Noel, você não tem medo de ser comido por aqueles antropófagos?
Noel Nutels sorriu e respondeu:
— Minha senhora, faz tempo que, no Brasil, ninguém come ninguém por via oral.