Tragédias na hora do almoço

Quem pode almoçar em casa teria um privilégio, não fosse um porém: a televisão ligada nesse horário não combina em nada com uma refeição saudável

Lalo Leal 2011 (© Arquivo RdB)Muita gente ainda almoça em casa no Brasil, embora o hábito venha diminuindo nos últimos anos pelas dificuldades de deslocamento em quase todas as cidades. Mas, além dos que trabalham fora e ainda têm essa possibilidade, há crianças, jovens, idosos, donas de casa e pessoas com outros afazeres que seguem almoçando em casa todos os dias.

A frase “o melhor controle é o controle remoto” exime os  concessionários de canais de TV de responsabilidades éticas e sociais. Sua liberdade absoluta inexise em qualquer outra atividade profissional

Sem dúvida, um privilégio. Salvo por um pequeno senão: a TV ligada nesse horário. Na tela, muitas cenas são incompatíveis com uma refeição saudável. Por exemplo: justiceiros arrastando um homem para a morte, com o som dos seus apelos desesperados pela vida, das ordens de atirar (e em que parte específica do corpo), dos tiros, das recomendações para crianças saírem­ de perto e finalmente as chamas consumindo a vítima.

Pode haver algo mais escabroso para ser mostrado em qualquer horário? Essas cenas foram ao ar perto do meio-dia no programa Cardinot Aqui na Clube, da TV Clube, afiliada da Rede Bandeirantes em Recife. O apresentador, Josley Cardinot, tem contra ele uma ação na Justiça por já ter exibido conteúdos semelhantes no programa Bronca Pesada, quando atuava pelo canal local do SBT.

E não adianta mudar de estação. As diferenças entre os programas são muito pequenas. Um copia o outro. No caso de Pernambuco, na hora do almoço a TV Jornal (SBT) apresenta agora o Plantão 190 e a TV Tribuna (Record), o Ronda Geral, também policialescos. Como se vê, a frase “o melhor controle é o controle remoto” é um simples jogo de palavras para eximir os concessionários de canais de TV de suas responsabilidades éticas e sociais. Dá-se a eles uma liberdade absoluta, inexistente em qualquer outra atividade profissional.

Não se trata de censurar a informação sobre um grave fato policial, mas de ressaltar a possibilidade de uma notícia como essa ser transmitida de forma menos agressiva. O telespectador tem o direito de ser informado sobre a execução cometida por justiceiros sem, no entanto, se submeter à violência das cenas exibidas.

Ainda mais diante da constatação de que, quando se liga a TV, nunca se sabe o que vem pela frente. E, para muitos, o susto é enorme. A TV não é como o jornal impresso, cuja noção do que publica se sabe antes de comprá-lo. A TV entra em nossa casa sem pedir licença, basta apertar o botão. Daí a necessidade de um controle público mais rigoroso.

As respostas da sociedade a esse tipo de programa ainda são tímidas. Em Recife, uma ação civil proposta pelo Ministério Público contra o programa Bronca Pesada, a pedido de várias organizações de defesa dos direitos humanos, arrasta-se há anos sem solução.

Agora, diante das imagens da execução de um homem, mostradas pela TV Clube, novas ações devem ser propostas. O Centro de Cultura Luiz Freire gravou as cenas e as exibiu para os deputados que integram a Frente Parlamentar da Comunicação do estado, tentando sensibilizá-los para o problema. Sem uma lei moderna que coíba­ esse tipo de abuso e um órgão regulador com poderes para aplicá-la, como ocorre na Europa, restam poucas alternativas de resposta dos cidadãos às emissoras.

Até hoje apenas uma atingiu os efeitos desejados. A decisão judicial que tirou do ar em 2005, por 30 dias, o programa Tarde Quente, da Rede TV!. A emissora acabou dispensando o apresentador João Kleber. Em lugar das humilhações impostas principalmente a homossexuais, foi obrigada a transmitir no mesmo horário produções realizadas por entidades defensoras dos direitos humanos. A audiência, é bom frisar, não caiu, desmentindo a afirmação repetida à exaustão de que o público gosta de baixarias.

Mas esse é um exemplo único. Muito pouco diante da quantidade de programas que, diariamente, em todo o país, seguem contribuindo para a banalização da violência e a expansão da incivilidade.