Imunidades, um paradoxo

O pai que procura a filha desaparecida ainda empunhará obstinado a fotografia ampliada no topo do mastro, mas os olhares de simpatia escassearão

O pai que procura a filha desaparecida não tem medo de nada. Se no começo age com cautela não é por temor, mas porque, atônito, ainda tateia como um cego o labirinto inesperado da desaparição. O começo é um aprendizado, o próprio perigo precisa ser dimensionado, não para si, porque ele não tem medo de nada, mas para os outros: amigas, vizinhos, colegas de faculdade. E no começo, há esperança, não se pensa no impensável; quem sabe discretamente se consegue a exceção. Assim agem as entidades de experiência milenar no trato com os déspotas, sem alarde, sem acusar. Apenas por isso, no começo o pai à procura da filha desaparecida age com cautela.

O pai que procura a filha desaparecida nunca desiste. Esperanças já não tem, mas não desiste. Agora quer saber como aconteceu. Onde? Quando exatamente? Precisa saber para medir sua própria culpa

Depois, quando se passaram muitos dias sem respostas, esse pai ergue a voz; angustiado, já não sussurra, aborda sem pudor os amigos, os amigos dos amigos e até desconhecidos; assim vai mapean­do, ainda como um cego com sua bengala, a extensa e insuspeita muralha de silêncio que o impedirá de saber a verdade.

Descobre a muralha sem descobrir a filha. Logo se cansará de mendigar atenção. Quando os dias sem notícia se tornam semanas, o pai à procura da filha grita, destemperado; importuna, incomoda com a sua desgraça e suas exigências impossíveis de justiça.

O sorvedouro de pessoas não para, a repressão segue cruenta, mas o pai que procura sua filha teme­ cada vez menos. Desgraçado mas insolente, percebe então o grande paradoxo da sua imunidade. Qualquer um pode ser engolido pelo vórtice do sorvedouro de pessoas, ou atropelado e despejado num buraco qualquer, menos ele. Com ele a repressão não mexe, mesmo quando grita. Mexer com ele seria confessar, passar recibo.

Sente-se intocável. Vai aos jornais, marcha com destemor empunhando cartazes na cara da ditadura, desdenhando a polícia; desfila como as mães da Praça de Maio, mortas-vivas a assombrar os vivos; imbuído de uma tarefa intransferível, nada o atemoriza. Recebe olhares oblíquos de susto, percebe outros, de simpatia.

Ao deparar na vitrine da grande avenida sua própria imagem refletida, um velho entre outros velhos e velhas, empunhando como um estandarte a fotografia ampliada da filha, dá-se conta, estupefato, da sua transformação. Ele não é mais ele, o escritor, o poeta, o professor de iídiche, não é mais um indivíduo, virou um símbolo, o ícone do pai de uma desaparecida política.

Quando as semanas viram meses, é tomado pelo cansaço e arrefece, mas não desiste. O pai que procura a filha desaparecida nunca desiste. Esperanças já não tem, mas não desiste. Agora quer saber como aconteceu. Onde? Quando exatamente? Precisa saber para medir sua própria culpa. Mas nada lhe dizem.

Outro ano mais, e a ditadura finalmente agonizará, assim parece a todos; mas não será a agonia que precede a morte, será a metamorfose, lenta e autocontrolada. O pai que procura a filha desaparecida ainda empunhará obstinado a fotografia ampliada no topo do mastro, mas os olhares de simpatia escassearão. Surgirão outras bandeiras, mais convenientes, outros olhares. O ícone não será mais necessário; até incomodará. O pai da filha desaparecida insistirá, afrontando o senso comum.

Alguns anos mais e a vida retomará uma normalidade da qual, para a maioria, nunca se desviou. Velhos morrem, crianças nascem. O pai que procurava a filha desaparecida já nada procura, vencido pela exaustão e pela indiferença. Já não empunha o mastro com a fotografia. Deixa de ser um ícone. Já não é mais nada. É o tronco inútil de uma árvore seca.