Cidadãos do mundo

História da imigração árabe e produção literária inspirada em sua diversidade cultural desconstroem estereótipos e revelam uma população criativa e transformadora

“A aceitação do outro também passa pela rejeição”, diz o escritor Salim Miguel, que veio do Líbano com 3 anos, em 1927 (foto: © Eduardo Zapia)

Dez anos após os atentados de 11 de setembro, uma nova imagem da sociedade árabe se impõe sobre o horizonte de frases feitas e estereótipos como o terrorista islâmico ou a mulher submissa. Os árabes passam a ser vistos com outro olhar – principalmente depois dos recentes levantes ocorridos em países do Oriente Médio. A emigração árabe para o Brasil, embora não costume estampar manchetes do noticiário como as revoluções no Egito ou na Tunísia, permite resgatar imagens que fogem aos modelos superficiais. A mescla de povos com diferentes identidades abriu espaço para a construção de figuras complexas e culturas múltiplas.  

O escritor Salim Miguel, que veio do Líbano com 3 anos, em 1927, conta que o destino da família era os Estados Unidos, onde sua mãe tinha parentes. “Por conta do acaso, maktub, acabamos no Brasil. Meus pais abandonaram o projeto original e nunca mais saíram daqui”, lembra, usando uma expressão que significa que o destino está escrito e é imutável. Segundo ele, os libaneses possuem capacidade de integração e logo se sentem parte da terra que os acolhe. “Afirmo isso com base em minha vivência e no livro de memórias Minha Vida, que meu pai deixou manuscrito em árabe e do qual fizemos uma edição em português, no centenário de seu nascimento.”

No Brasil, a migração é dividida em duas etapas. A primeira vai de 1880 até 1945. Alguns migrantes eram a elite cultural e política no próprio país, diferentemente do que ocorria com outros fluxos migratórios. Italianos e espanhóis, por exemplo, em geral eram mais pobres e vinham para o Brasil amparados pelo governo. Os árabes chegavam de forma totalmente independente, tendo como principal atividade a venda de mercadorias – que eram guardadas em uma caixa. Assim, passaram a ser conhecidos como os homens da caixa ou mascates. 

“Exercendo atividade comercial, o mascate e o varejista se relacionavam com todas as camadas da sociedade brasileira. Eram chamados de turco de prestação, armarinho, caixeiro ou matraqueiro”, lembra Miguel. Segundo o octogenário autor, a instalação de uma comunidade nova em uma terra provoca medos, desconfiança e preconceito. “Porém, a aceitação do outro também passa pela rejeição”, afirma. 

Amim Maalouf cultura (Divulgação)A maioria dos árabes até 1920 pretendia voltar ao país de origem, desde que este se libertasse da dominação otomana e da presença europeia. Essa ideia muda depois da Segunda Guerra Mundial, devido aos problemas causados com a criação do Estado de Israel e às expectativas frustradas com a independência do Líbano, em 1943. Assim, a nova terra passa a ser vista como lar definitivo.

 

Amin Maalouf: identidade é um conceito dinâmico, plural, em constante construção
 

 

“Nesse momento, o forasteiro perde sua identidade local, mas ganha a ótica de cidadão do mundo. É uma fase de transição, a pessoa relativiza suas origens”, diz a psicóloga Claude Fahd Hajjar, conselheira para as Américas da Federação das Entidades Árabes Brasileiras do Estado de São Paulo.  

Autor de Identidades Assassinas, o escritor libanês radicado na França Amin Maalouf diz em seu livro que identidade é um conceito dinâmico, plural, em constante construção, determinado e relativizado pelo contexto.

Claude Fahd - mae (Arquivo Pessoal)“E todo estereótipo se alimenta da falta de esclarecimento”, lembra a professora Luciana Wrege Rassier, do Departamento de Língua e Literatura Estrangeira da Universidade Federal de Santa Catarina.

Laurice, mãe de Claude Fahd, deixa o Líbano com a irmã e os filhos para se encontrar com o pai, asilado no Brasil

Anseios literários

Esse desejo por renovar a identidade e reconstruir a rotina em uma sociedade totalmente nova faz com que os imigrados criem grupos literários por toda a América. Um dos mais célebres, fundado por Gibran Khalil Gibran (1883-1931), em 1920, em Nova York, influencia a criação de outros. Composta por cerca de 30 poetas, a chamada Liga Andaluz, estabelecida em São Paulo em 1933, tinha como objetivos inovar o discurso e a forma dos textos, a partir de um repertório em que a mulher, o amor e a natureza eram idealizados. 
 
Segundo Karim Hauser, diretor do programa Arábia Americana, da Casa Árabe de Madri, esses grupos fazem parte da chamada literatura mahjar. “A literatura mahjar é considerada uma espécie de renascimento, uma vez que reivindica reviver o passado glorioso de Al-Andalus”, diz, citando o nome da Península Ibérica sob a ocupação árabe independente do Império Otomano, na Idade Média. “Já o grupo de Gibran rompe com modelos estabelecidos, ao dar início à chamada poesia sussurrada, à prosa poética e ao verso livre.”  
 
No Brasil, a Liga Andalus seguia modelos poéticos tradicionais e adaptava-se ao contexto do novo mundo. “Os poemas dessa fase estão impregnados de nostalgia, mas também são existenciais, como nos textos de Fawzi Maaluf”, diz Hauser. Essas bifurcações da literatura árabe em solo americano são testemunhas da ponte construída entre duas culturas, algo que contraria as supostas “incompatibilidades de identidade” defendidas por alguns meios de comunicação. “O sucesso das civilizações árabes mestiças deve ficar registrado e ser reconhecido”, afirma. 
 
Ele recorda, no entanto, ser anterior à emigração do século 19 a influência árabe no imaginário latino-americano, que recebeu elementos da Espanha e da época de Al-Andalus, a partir de autores e obras clássicas espanholas, como La Celestina, e até mais recentemente de escritores como Federico García Lorca e Juan Goytisolo. 
 
Néstor Suleiman, presidente da Federação de Entidades Argentino-Árabes de Santa Fé, na Argentina, concorda. “As organizações políticas, sociais, religiosas, culturais e esportivas que se desprendem das comunidades árabes arraigadas na América Latina são exemplos que permitem distanciar-nos de imagens estereo­tipadas”, avalia. “Muitos jovens que deixaram a própria terra de forma violenta abriram espaço para a construção de uma literatura comprometida, orientada por ideias transformadoras e revolucionárias.”

 

Experiências na pele

Com 30 livros publicados, Salim Miguel é exemplo vivo dessa fecundidade. O autor conta que, quando criança, o idioma do lar era o árabe e o da rua, o alemão – a família se radicou em Santa Catarina. Somente aos 8 anos passou a estudar português na escola. “Querendo ou não, sou o produto da influência dessas duas culturas e agora elas convivem em mim em harmonia.”
 
Seus pais aprenderam o português rapidamente, mas preferiam falar o árabe. “Não demoraram para se adaptar aos novos hábitos e costumes. Permanecia viva, porém, a visão de mundo trazida do Líbano. A distração do meu pai era o jogo de gamão com os filhos e os brimos, aquecido com um gole de arak”, lembra. “No meu processo de amadurecimento, tanto pessoal como literário, concluí que a herança libanesa, que na adolescência eu relutava em aceitar, só me enriquecia.”   
 
O imaginário árabe transcendeu as barreiras da origem e acabou por influenciar autores bem brasileiros. Alberto Sismondini, professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, em Portugal, observa que autores como Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade são exemplos dessa mistura. “Um dos personagens clássicos de Guimarães Rosa, o jagunço Riobaldo, declara sua xenofilia, frequentando a casa de Seu Assis Wababa, para curtir um ambiente hospitaleiro, saborear iguarias orientais, e também amando Rosa Warda, que é um nome belíssimo por sua síntese intercultural”, diz. No poema Os Turcos, Drummond representa todos os estereótipos relacionados ao medo da alteridade. No final, porém, revela uma atitude plenamente inclusiva. 
 
Sismondini destaca, por fim, que a partir da segunda metade do século 20 a geração dos filhos ou netos de migrantes, entre eles Mário Chamie e Waly Salomão, participou da construção das vanguardas brasileiras, enquanto escritores como Raduan Nassar e Milton Hatoum tornaram-se cânones da literatura local. “Parafraseando Mário de Andrade, são autores que atualizaram a inteligência artística brasileira”, diz.  

 

Guia de leitura

Universo literários que jogam com o imaginário árabe:

  • Alberto Mussa – O Enigma de Qaf e Elegbara
  • Alcy Cheuíche – Jabal Lubnan, As Aventuras de um Mascate Libanês 
  • Ana Miranda – Amrik
  • Jorge Amado – A Descoberta da América pelos Turcos
  • Marco Lucchesi – Diwan
  • Michel Sleiman – Ínula Niúla 
  • Milton Hatoum – Relato de um Certo Oriente, Dois Irmãos e Cidade Ilhada
  • Raduan Nassar – Lavoura Arcaica, Um Copo de Cólera e Menina a Caminho 
  • Salim Miguel – Nur na Escuridão, Mare Nostrum, Reinvenção da Infância e Onze de Biguaçu Mais Um
  • Waly Salomão – Tarifa de Embarque