Era uma vez na Europa…

A União Europeia e sua unidade monetária foram ideias plantadas no pós-guerra, num universo intelectual de bem-estar social, mas colhidas em outro, reacionário e individualista, pós-neoliberalismo

Outro efeito colateral dessa hegemonia conservadora foi o enorme estímulo dado à pregação da extrema direita, xenófoba, antiprogramas sociais, antiesquerda, que hoje varre a Europa
Flávio Aguiar (Foto © Arquivo RdB)

A foto galvanizou corações e mentes: no dia 22 de setembro de 1984, no ossuário de Douaumont, em Verdun, na França, durante a homenagem aos mortos de uma das maiores e mais inúteis batalhas da Primeira Guerra Mundial entre alemães e franceses (10 meses, 700 mil baixas, 317 mil mortos), o presidente François Mitterrand e o chanceler Helmut Kohl deram-se as mãos diante de dois túmulos, o de um francês e o de um alemão. Não era apenas um preito ao passado; era a promessa de uma nova Europa, renascida das cinzas de séculos e séculos de guerras e ocupações.

Pois bem, hoje Alemanha e França são aliadas estreitas na luta para preservar o equilíbrio do combalido euro, a moeda-símbolo da unificação da Europa. Mas se o presidente Nicolas Sarkozy e a chanceler Angela Merkel aparecessem numa foto de mãos dadas, em vez do protocolar aperto de mãos… As risotas à socapa seriam inevitáveis.

Sabe-se, à boca pequena, dos conflitos e confrontos amargos provocados por isso que se chama “preservar o equilíbrio do combalido euro”. Houve narrativas na mídia sobre o presidente francês dando murros na mesa e ameaçando abandonar a moeda se o Fundo de Emergência para socorro dos países endividados não fosse criado na base de € 750 bilhões. Além disso, quem acompanhou o noticiário se deu conta das desavenças e dificuldades enormes dos governos da zona do euro para concertar um novo empréstimo à Grécia no valor extra de € 107 bi (além dos € 110 bi inicialmente repassados).

É que os tempos mudaram, e com eles os corações, mentes e vontades.
Se a desvalorização do euro favorece as exportações alemãs (sobretudo para a China e o Sudeste Asiático), na periferia da moeda ela tem um efeito devastador, porque vem acompanhada de desemprego sobretudo para os jovens, desvalorização brutal de salários e aposentadorias, queima de programas sociais, enfim, tudo aquilo que se chama “austeridade”, e se traduz por “para os bancos inimigos, tudo; para os cidadãos nossos amigos, o rigor da economia”.

Qual a chave do mistério? Quando Mitte­rrand e Kohl (um socialista e o outro democrata-cristão) deram-se as mãos, a hegemonia residual na Europa era de herança social-democrata e parceira de John Maynard Keynes. Hoje, a hegemonia a cavalo da situação é a de herança neoliberal e submetida aos ditames de Margaret Thatcher.

Quer dizer: a União Europeia e a união monetária da Europa foram ideias plantadas num universo intelectual e colhidas em outro, muito mais reacionário, conservador, individualista, cultor da desigualdade e do laissez-faire econômico e financeiro – o que levou aos desastres das crises de 2007-2008 e do endividamento dos países europeus, dívidas ironicamente chamadas de “soberanas”.

Outro efeito colateral dessa hegemonia conservadora foi o enorme estímulo dado à pregação da extrema direita, xenófoba, antiprogramas sociais, antiesquerda, que hoje varre a Europa. O último broto desse clima de violência retórica foi o massacre de Oslo, perpetrado por um fanático de direita. Sim, ele era islamofóbico; mas não saiu atirando em muçulmanos ou estrangeiros. Ao contrário, dedicou-se com afinco a exterminar a possível futura elite de um partido do espectro à esquerda na Europa, o Trabalhista da Noruega.

Nesse clima de fundo ameaçador, grassam as flores amarelas do medo, como dizia Drummond no seu poema de 1940. Enquanto isso, a agência financeira PricewaterhouseCoopers (PwC) anuncia – leio enquanto redijo essas linhas – que, embora representem apenas 17% da economia mundial, os países do Bric serão responsáveis por 40% do seu crescimento nos próximos dois anos. Durma-se com um crescimento desses!