Kane não envelhece

Diz a lenda que François Truffaut bateu seu recorde de elogios ao assistir a Cidadão Kane: “Maravilhoso! Inteligente! Atemporal! Surpreendente! Transgressor! Poético!”

Welles, 25 anos, vive o magnata da mídia da juventude até a morte solitária

O jovem Charles Foster KanePois é, o clássico dirigido por Orson Welles completa 70 anos com o frescor e as qualidades apontadas pelo cineasta francês François Truffaut. Nenhum outro filme da história influenciou diretores tão distintos e importantes, de Federico Fellini a Stanley Kubrick. E olha que Orson Welles poderia até se dar ao luxo de viver intensamente como Janis Joplin, Jimi Hendrix e Amy Winehouse e encarar sem medo a maldição dos 27 anos. Afinal, tinha apenas 25 quando terminou de filmar Cidadão Kane, considerado até hoje o maior longa-metragem de todos os tempos.

Era a primeira vez na história da indústria do cinema que um jovem diretor, com apenas alguns curtas-metragens na bagagem, ganhava carta branca para dominar a produção de um filme do começo ao fim. Welles, porém, estava longe de ser um aventureiro. Já mostrara talento no teatro e, principalmente, como radialista, ao provocar pânico na população dos Estados Unidos, em 30 de outubro de 1938, com a simulação de uma invasão extraterrestre.

Era apenas uma genial adaptação radiofônica do livro de ficção A Guerra dos Mundos, de H. G. Wells. Os americanos não viram nada de ficção naquilo – alguns até se suicidaram –, mas Welles­ se divertiu um bocado. A partir dali, passou a pensar num filme que revolucionasse a técnica de fazer cinema usando a linguagem radiofônica, que ele dominava como poucos. Começava a nascer o filme que é considerado o pai do cinema moderno.

O jornalista e crítico de cinema Sérgio Augusto tinha apenas 16 anos quando viu pela primeira vez Cidadão Kane, durante uma mostra de cinema americano na sala Cinemateca, no Rio de Janeiro, em 1958. Cinéfilo desde o início da adolescência, Sérgio ouvira falar maravilhas do filme, de suas inovações na estrutura narrativa e nos enquadramentos. Mas, mesmo com tantas referências, não esperava assistir a algo tão moderno. “Eu enlouqueci. Sabia que aquele filme tinha mudado a história do cinema, mas não imaginava que provocaria aquele impacto em mim”, diz Sérgio. “A partir dali, em todo filme que eu gostava enxergava um pouco da influência de Cidadão Kane, de Morangos Silvestres, de Ingmar Bergman, a Oito e Meio, de Fellini.

Sérgio Augusto viu tantas vezes Cidadão Kane que passou a achar alguns erros de filmagem. Alguns graves. A palavra “Rosebud”, dita pelo protagonista Charles Foster­ Kane antes de sua morte – o sentido da expressão é o grande segredo do filme –, não poderia, segundo Sérgio Augusto­, ser ouvida por ninguém. “Charles está sozinho no quarto naquele momento – a enfermeira só entra depois que ele já está morto. É um erro aparentemente grotesco, mas não tem nenhuma importância diante da grandeza do filme”, afirma o jornalista.

Cena de Cidadão Kane - menino e trenó

O trenó do menino Kane foi para a fogueira, junto com todas as suas vaidades

Muito se especulou sobre qual seria o verdadeiro significado de “Rosebud” (botão de rosa). Alguns críticos americanos juram que a palavra era uma alusão à parte íntima da anatomia da amante do magnata das comunicações William Randolph Hearst, que serviu de inspiração para a criação do personagem Charles Foster Kane.

Hearts, aliás, ficou furioso com o filme de Welles e tentou a todo custo proibir sua exibição. Proprietário na época de 28 jornais e 18 revistas, além de várias cadeias de rádio e de uma grande produtora de cinema, o milionário era tão poderoso que o chefão da MGM, Louis B. Mayer, desesperado com suas ameaças, ofereceu US$ 800 mil à produtora RKO para que esta queimasse o negativo do filme. O resto é história. Pouco palatável para a classe média americana, o clássico de Welles não chegou a ser um sucesso comercial (das nove categorias indicadas para o Oscar, ganhou apenas uma – melhor roteiro, do próprio Welles e de Herman J. Mankiewicz), mas atravessou sete décadas cultuado por uma legião de cinéfilos e de jovens diretores.    

É o caso de Marcus Baldini, diretor de Bruna Surfistinha, uma das maiores bilheterias do cinema brasileiro em 2011. Baldini viu o filme pela primeira vez na faculdade de Cinema. O que era uma obrigação curricular virou um enorme prazer. “Achei que assistiria a mais um filme datado, considerado ‘genial’ pelos críticos e pouco prazeroso de ver”, lembra Baldini. “Mas não é nada disso. O filme mantém o frescor. Não parece feito há 70 anos. Sempre que revejo acho algo novo – é para ser visto apreciando cada detalhe.”

Filme representou uma revolução cenográfica e de montagem

Cena de Cidadão Kane

Recentemente, a Warner realizou um grande trabalho de restauro, quadro a quadro, do clássico. A edição especial, Citizen Kane: 70th Anniversary Ultimate Collector’s Edition, já com legendas em português, pode ser adquirida no site da Amazon por US$ 45. É mais uma oportunidade de conferir por que um filme completa 70 anos de idade com corpinho de 20.