No colo da serra

Eles falam português e têm luz elétrica. Conversam em guarani e ensinam a suas crianças que os recursos naturais, como seus valores e sua cultura, são sagrados

Na aldeia, cultivam batata, mandioca, palmito e fazem artesanato

“A gente agradece por tudo que a terra dá. As pessoas pensam que a gente tem vários deuses, deus da chuva, deus da terra… mas não é assim. A gente agradece cada ação da natureza, a chuva, a falta dela, o sol, os animais, a terra, as plantas. Aqui, a gente entende a natureza.”

Enquanto uma de suas filhas tece um colar feito de miçangas e ossinhos do tatu assado há algumas semanas, Mariano, líder Guarani, expressa o amor e o respeito pela terra que alimenta seu povo, na Reserva Indígena do Rio Silveira.

Dá para ver o céu e ouvir o mar da rodovia que leva à reserva, na encosta da Serra do Mar, entre as cabeceiras do Rio Silveira e do Ribeirão Vermelho, em Boraceia, litoral norte, a 200 quilômetros de São Paulo. Uma pequena ponte e uma porteira separam a estrada dos seis grupos de famílias que formam a aldeia. Demarcada em 1987, a reserva ocupa uma área de mais de 948 hectares de Mata Atlântica e abriga 495 índios tupi-guaranis, todos com os mesmos preceitos de Mariano: a caça, a pesca e a agricultura devem ser respeitadas, assim como o clima e a disponibilidade dos recursos naturais. 

A natureza vem dividindo espaço com a tecnologia, pelo menos para as novas gerações. Nas ocas, televisão, geladeira, chuveiro quente e até computador começam a se estabelecer como algo indispensável. Mas todas mantêm a tradição: são feitas de taipa e cobertas por folhas de palmeiras. “Essa casa é moderna, chique, MP3, PlayStation 2, 3. Antes a gente morava lá em cima, perto do rio, onde as casas eram quadradas. Essa é redonda, adaptada dos outros índios do Xingu”, sorri Mariano. 

Boraceia Mariano (foto: Adriano Ávila julho 2011)

Apesar da cozinha e do banheiro de alvenaria e da invasão dos eletrodomésticos e celulares, os índios mais velhos resistem diariamente para manter vivas suas tradições e costumes. 

Prova disso é a língua materna, o guarani, que falam o tempo todo, além do português, quando necessário.

A aldeia, que conta com o apoio das prefeituras de São Sebastião e de Bertioga, tem duas escolas indígenas, onde as aulas são em português e em tupi-guarani. 

A importância de preservar a identidade étnica está presente na rotina, nos artesanatos esculpidos em madeira e bijuterias confeccionadas com sementes e miçangas. Além disso, os guaranis são agricultores natos, cultivam batata-doce, milho, mandioca e palmito. Palmeiras juçara, pupunha e açaí compõem a paisagem perto das ocas.  A demanda em todo o país contribuiu para que a espécie se tornasse uma das mais exploradas da Mata Atlântica, correndo risco de extinção, já que a extração do palmito implica sacrifício da planta inteira. Por isso é considerada crime ambiental, com plantio, cultivo e colheita sob regras rigorosas.

Do plantio ao corte, a palmeira juçara leva 12 anos para se desenvolver. A quantidade extraída de uma planta adulta é suficiente para encher um único vidro de 300 gramas do produto. “Quanto mais grossa a palmeira, melhor o miolo do palmito”, diz Mariano. Ele é vendido in natura na beira da rodovia mais próxima (SP-055/BR-101, Rio-Santos) por R$ 5, em média, mesmo preço das mudas. Já o quilo de sementes custa R$ 30.

Há 11 anos, a comunidade começou o plantio de reposição, que, além de controlar a quantidade ideal para cada safra, garantiria a colheita seguinte, protegendo aquilo que a terra oferece. As práticas de sustentabilidade em relação ao palmito foram estimuladas pela fundação italiana Slow Food para a Biodiversidade, pelo Instituto Teko Arandu – braço da Associação Guarani Tjeru Mirim B’ae Kuaa’y – e com apoio dos governos locais. O manejo sustentável agrega valor ao palmito.

Para controlar a colheita tudo é feito manualmente: “A gente mede cada metro quadrado e conta quantos pés tem a cada 1.000 metros quadrados. Assim temos uma noção de quantos haverá numa área grande e quantos podemos cortar, e se podemos. Senão a palmeira some e a gente não tem mais palmito”. A plantação da aldeia está cercada de vegetação nativa e animais silvestres, além de alguns pequenos viveiros de mudas. 

Na trilha de mata fechada pode-se contemplar tucanos no alto das palmeiras. A caminhada é longa e dificultosa: até a cachoeira são, aproximadamente, dois quilômetros. Em meio a terra úmida, poças d’água imensas e pequenas pontes feitas de galhos para facilitar a travessia de trechos rasos do Rio Silveira, a paisagem é surpreendente.

De volta à aldeia, o dia acaba na Casa da Reza, onde toda noite o pajé toca violão e fuma seu cachimbo. A fumaça purifica os instrumentos pendurados na parede principal. No fim do ritual, todos se sentam ao redor do pajé para conversar, sempre em guarani. Aos poucos, os índios retornam às ocas, e a Casa de Reza se esvazia. No dia seguinte, o silêncio pacífico da aldeia só é quebrado pelo som dos pássaros e pelo riso das crianças, que brincam despreocupadas no ambiente que já aprenderam a cultuar. 

Boraceia crianças (foto: Adriano Ávila julho 2011)

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