Matutações sobre o banheiro

Ao andar pela região central de São Paulo, vendo casarões burgueses que viraram cortiços, lembrei-me de uma coisa que aparentemente não tem nada a ver: o hábito de ir ao […]

Ilustração Edicao 60 banheiroAo andar pela região central de São Paulo, vendo casarões burgueses que viraram cortiços, lembrei-me de uma coisa que aparentemente não tem nada a ver: o hábito de ir ao banheiro. Algo que melhorou muito com a urbanização foi o entendimento de que ir ao banheiro é normal e bom, que os ambientes dos banheiros devem ser saudáveis, tem de dar gosto entrar neles e ficar um tempão, lendo ou matutando. Isso em casas de classe média pra cima, pois as construtoras que fazem habitações populares parecem considerar que banheiro de pobre tem de ser uma porcaria.

Há muitos anos, fazendo uma reportagem, perguntei a uma líder do movimento dos moradores de cortiço qual era seu maior sonho. “Morar numa casa que tenha um banheiro só pra minha família”, respondeu.

Parece meio bobo, não é? Mas durante muito tempo fazer as tais necessidades fisiológicas era motivo de vergonha. Ir ao banheiro tinha de ser uma coisa meio clandestina. E o ambiente era de ruim a péssimo. Era pra gente entrar, fazer o que era preciso e sair depressa, com nojo. 

Certa vez, há uns 40 anos, estava conversando com uma colega de trabalho e ela pediu licença:
– Vou ao banheiro e já volto. Estou apertada para… – fez uma pausa, ficou corada e continuou –…lavar as mãos. 

Brinquei:
– Nunca vi ninguém ficar apertado para lavar as mãos.

Uma cena de um filme surrealista de Luís Buñuel, O Discreto Charme da Burguesia, aborda o que é vergonhoso ou não é. Um monte de gente está em volta de uma mesa, mas não tem comida, pratos, talheres. As pessoas não estão sentadas em cadeiras, mas em vasos sanitários. De repente, alguém pede licença e entra num cômodo fechado, tranca a porta e traça uma comida. 

Há muito imagino que isso de encarar como vergonhoso o ato de ir ao banheiro – que felizmente não existe mais – foi trazido por europeus. Nossos índios não tinham isso, viviam de bem com a natureza e com o que ela exige da gente. Nos prédios antigos das cidades europeias, os banheiros são poucos e coletivos, um por andar ou às vezes nem isso, um só no andar térreo.

No Brasil também eram escassos. Bares raramente tinham banheiro, e quando tinham (isso permanece em muitos) parecia um chiqueiro. Na minha cidade, só um bar tinha banheiro. Um luxo!

No campo de futebol, nem no vestiário tinha banheiro. Eu ficava admirado com as mulheres, que iam assistir aos jogos e aguentavam o tempo todo ali, enquanto os homens – principalmente no intervalo – corriam para o mato.

Na cidade toda, poucas casas tinham a chamada “privada patente”, essa de vaso sanitário, dentro de casa. O que havia era uma casinha com uma fossa, que servia também pra gente jogar coisas indesejadas. 

Meu pai tinha um chicote de três pernas que era uma barra no lombo da gente. Um dia meu irmão menor, depois de apanhar, jogou o chicote na “privada”.

E era um ambiente também para coisas meio clandestinas. Por exemplo: fumar escondido, como certa vez peguei meu irmão mais velho. Ele pediu pra eu não contar aos meus pais. Voltamos juntos para dentro de casa e eu, com 4 ou 5 anos de idade, disse para meu pai e minha mãe:
– O Toninho não tava fumando na privada não, viu? Ele tava era fazendo cocô. Eles caíram na risada e ficaram sabendo que o Toninho fumava. Não o castigaram.

Na zona rural, muita gente não tinha nem “casinha”. A moita de bananeiras era o mais tradicional banheiro rural.

Mas, voltando ao início, por que lembrei isso tudo vendo casarões que viraram cortiços? É que há cortiços em que moram centenas de pessoas só com dois banheiros. Imagine as brigas de gente com dor de barriga esperando a fila andar. Há muitos anos, fazendo uma reportagem, perguntei a uma líder do movimento dos moradores de cortiço qual era seu maior sonho. Ela respondeu com os olhos brilhando:
– Morar numa casa que tenha um banheiro só pra minha família.