Tirania nas telas

Documentários Amor? e Sequestro mostram duas faces da violência

Apoio Luxuoso: Elenco estelar embala os depoimentos em Amor?, do diretor João Jardim

A violência é o tema que une os dois novos filmes dos documentaristas brasileiros João Jardim e Jorge Wolney Atalla Junior, respectivamente Amor? e Sequestro, que estrearam na segunda metade de abril. Enquanto o primeiro mostra, por meio de depoimentos interpretados por atores famosos, histórias de relacionamentos amorosos em que a violência aparece sempre ou uma única vez, o segundo mergulha nas táticas e investigações da Divisão Anti-Sequestro de São Paulo.

“O filme é um ensaio a respeito do que acontece numa relação amorosa que vai permitindo, aos poucos, que as pessoas trilhem um caminho para a violência. É essa permissividade e cumplicidade que leva a um lugar perigoso do ponto de vista da sanidade”, avalia João Jardim. Para fazer o filme, ele contou com o auxílio do jornalista Renée Castelo Branco, que realizou pesquisas em ONGs de defesa da mulher, delegacias e instâncias judiciais de São Paulo e do Rio de Janeiro.

Entre as histórias retratadas em Amor? estão a de um casal de lésbicas que mantinha uma relação repleta de brigas e baseada no ciúme patológico e a de uma mulher que foi reconquistada pelo marido depois de ser agredida. “São mecanismos de insegurança, masoquismo, sadismo, dependência e radicalismo, que muitas vezes podem nem ser malignos, mas são capazes de atingir muita gente, até quem nunca teve predisposição à violência”, acrescenta.

João Jardim não sabe definir se o filme é ficção ou documentário, uma vez que escolheu atores, como Lilia Cabral, Eduardo­ Moscovis, Julia Lemmertz e Ângelo Antônio, para interpretar depoimentos reais­ e, assim, preservar os autores. Essa razão, segundo o diretor, também o afasta da comparação direta com o hoje célebre documentário Jogo de Cena, dirigido por Eduardo Coutinho, que conta com grandes artistas e anônimos para analisar a arte da representação. 

Atualmente trabalhando num filme de ficção baseado nos últimos 19 dias da vida do presidente Getúlio Vargas, João Jardim, de 49 anos, é reconhecido como um dos principais documentaristas do país. Afinal, depois de ser assistente de direção de feras como Cacá Diegues, em Dias Melhores Virão, de 1989, ele dirigiu, junto com o fotógrafo Walter Carvalho, o documentário Janela da Alma, de 2002. 

Três anos depois, em 2005, João Jardim mergulhou no universo da educação para realizar Pro Dia Nascer Feliz, que recebeu o prêmio especial do júri no 10º Cine-PE (festival do audiovisual), em Recife. Mais recentemente, codirigiu Lixo Extraordinário, com Lucy Walker e Karen Harley, premiado no Festival de Berlim e no Sundance Film Festival e o primeiro documentário com profissionais brasileiros a ser indicado ao Oscar, ao mostrar o trabalho do artista plástico Vik Muniz junto aos catadores de lixo do Jardim Gramacho, em Duque de Caxias (RJ), onde fica o maior aterro sanitário da América Latina. 

Horror

Rafael e Arthur foto do festivalPenetrar numa realidade praticamente desconhecida foi o objetivo do documentarista Jorge Wolney Atalla Junior ao realizar Sequestro. “Foi um filme muito complicado pessoalmente e profissionalmente. Através do Gorip (Grupo Operativo de Resgate da Integridade Psíquica), entidade de psicólogos e psiquiatras que trabalham gratuitamente com vítimas de sequestros que sofrem de estresse pós-traumático, fomos apresentados às pessoas que deram depoimentos ao filme”, conta. Entre elas, uma garota que foi estuprada no cativeiro e outra que menstruou no primeiro dia do sequestro e passou mais de uma semana sem tomar banho. “Antes das entrevistas, o médico da vítima me explicava o caso e o que poderíamos abordar. Não entrávamos em assuntos que fossem psicologicamente perigosos, somente se a própria vítima comentasse­.”­

A ideia para Sequestro surgiu durante uma das exibições do primeiro documentário de Atalla Junior, A Vida em Cana, a respeito dos cortadores de cana, inspirado em Buena Vista Social Club (1999), de Wim Wenders, e foi premiado pela Academia de Imprensa Internacional de Los Angeles. “Estava no Festival Brasileiro de Cinema em Miami, em 2001, e dizia a um amigo que não voltaria a morar no Brasil devido à (falta de) segurança, que preferia continuar vivendo nos Estados Unidos. Ele citou o sequestro do publicitário Washington­ Olivetto, ocorrido naquele ano, e perguntou por que ninguém mostrava o que acontecia em São Paulo. Eu disse, então, que faria meu próximo filme sobre a verdade por trás da motivação do crime e a razão pela qual se espalhou e se banalizou tanto no Brasil”, lembra.

Formado em Economia pela Universidade do Texas, nos Estados Unidos, Jorge Wolney Atalla Junior praticamente abandonou os cuidados com os negócios do pai empresário para se dedicar ao cinema, começando com o curta-metragem Princess, de 1999, que recebeu menção honrosa no Columbus International Film Festival. “Quando fui estudar cinema em 1998, havia terminado a faculdade de Economia e o mestrado em Administração de Empresas. Trabalhei algum tempo com meu pai, mas sempre tive vontade de estudar cinema. Comecei fazendo cursos de interpretação, e minha mulher me incentivou a fazer direção cinematográfica”, conta.

Enquanto se prepara para dirigir uma ficção inspirada num caso real de sequestro ocorrido em São Paulo – mais uma vez com base no trabalho da Divisão Anti-Sequestro –, Atalla Junior garante que não pensa em fazer carreira internacional: “Aqui a gente tem um papel a cumprir e a função de ajudar, ainda que minimamente, a criar uma identidade audiovisual para o país. Não que eu tenha essa pretensão, mas acho que sou uma pecinha no meio de todas as outras pessoas”. 

Os dois cineastas e uma nova geração de documentaristas brasileiros estão ajudando a mostrar aos brasileiros uma realidade até então pouco conhecida e exibida nas telas de cinema, que perpassa a questão da violência a que todos estão sujeitos diariamente, seja no ambiente doméstico e das relações amorosas, seja como vítima de roubos, sequestros, e a ação da própria polícia.