O mito chinês

Quem acha que a China é um mar de rosas para a exploração da força de trabalho pode ter uma surpresa

A China continua o país mais populoso do mundo. Nos últimos 60 anos, a população economicamente ativa se manteve próxima dos 60% da população total. Hoje, isso representa cerca de 830 milhões de trabalhadores, dos quais 300 milhões são agrícolas (autônomos e assalariados), 250 milhões urbanos (industriais, comerciais e de serviços), 160 milhões da indústria, comércio e serviços existentes nas zonas rurais e 120 milhões assalariados migrantes. O número de aposentados ultrapassou os 143 milhões.

De 1980 a 2010, a força de trabalho cresceu cerca de 300 milhões. Mas, enquanto o número de trabalhadores agrícolas se manteve relativamente estacionado, mais de 200 milhões se transferiram dos campos para as indústrias urbanas. Em vista de sua escala, o mundo chinês do trabalho desperta não só interesse como interpretações variadas. Embora tenha perdido força a ideia de que os baixos preços das mercadorias chinesas se devam a trabalho escravo, ainda há gente que considera essa prática predominante naquele mercado. 

Por outro lado, muitos empresários, no Brasil e em outros países, continuam supondo que os baixos salários são o componente fundamental dos preços dos produtos fabricados por lá. Sem distinguir a diferença entre salário nominal e real, gostariam de implementar o sistema de baixo salário real, como se este já não vigorasse há muito tempo por aqui.

Além disso, a maioria não compreende os problemas que qualquer processo de transição de matrizes produtivas impõe a um país. Talvez por isso não sejam poucos os que veem os conflitos trabalhistas existentes na China como a característica principal de seu mercado de trabalho. Não levam em conta sua história a partir dos anos 1950, quando foi implantado o pleno emprego, com base no sistema 3 por 1, no qual três trabalhadores ocupavam um posto de trabalho, numa espécie de emprego vitalício designado pelo sistema de alocação governamental. 

Esse sistema garantiu emprego a toda a força de trabalho. Cada empresa era responsável pelos serviços médicos, aposentadorias e outros benefícios sociais. Embora teoricamente isso fornecesse tranquilidade aos trabalhadores, na prática travava a elevação da produtividade, impedia o desenvolvimento das forças de produção e, portanto, mantinha a sociedade num baixo nível de consumo e riqueza. 

A situação começou a mudar com as reformas nas zonas urbanas a partir de 1984. Com a adoção paulatina da economia de mercado, a força de trabalho passou à categoria de mercadoria. Os empresários, no início basicamente as estatais, podiam contratar ou demitir conforme suas necessidades. Os trabalhadores, por sua vez, estavam livres para trocar de emprego à medida que desejassem, ou ter o próprio negócio. 

Mercado de trabalho

Tal processo não se implantou bruscamente. Por um tempo, as estatais e os governos locais se encarregaram de criar alternativas para a realocação dos excedentes e evitar um desemprego maciço. Somente depois de dez anos o mercado de trabalho se instalou em toda a China. Hoje, ele atende 40 milhões de micro e pequenas empresas urbanas comerciais e de serviços, 22 milhões de empresas industriais rurais de povoados e cantões e centenas de milhares de médias e grandes empresas. São empresas privadas nacionais, privadas estrangeiras, públicas cooperativas, públicas estatais e mistas – neste último caso, associações entre os quatro tipos anteriores.

A introdução, mesmo que paulatina, do mercado de trabalho, representou uma mudança considerável. Antes, os trabalhadores estavam despreocupados quanto à elevação da produtividade, escolha da carreira, competição por emprego, desemprego e outros fenômenos típicos das economias mercantis. A partir de então, passaram a enfrentar a disputa por vagas. 

Outra mudança significativa, com as reformas de 1984, refere-se à diversificação das profissões. Várias simplesmente desapareceram, ou se tornaram redundantes. Já as relacionadas com serviços de transportes, correios, telecomunicações, finanças, turismo, esportes e com as indústrias eletrônicas emergiram com força.

Essas transformações representaram um desafio, tanto para as diversas categorias de trabalhadores como para o governo. Nem todos os empresários conheciam as leis trabalhistas, o que os levou a constantes conflitos com os empregados. Apenas de 2001 a 2005, numa inspeção em 4,2 milhões de empresas, mais de 1 milhão foram flagradas com empregados sem contrato, envolvendo 34 milhões de trabalhadores. 

 Desemprego

Outro aspecto importante é que, a cada ano, devem ser criados milhões de empregos para atender à incorporação dos jovens que chegam à idade de trabalho. Nos anos 1980 esse número beirava os 14 milhões, mas caiu paulatinamente com a introdução da política de filho único. Ainda assim, são 9 milhões de novas vagas por ano. Além disso, cerca de 4% da população economicamente ativa não encontra emprego.

Nessas condições, a interferência do Estado tornou-se relevante para garantir o cumprimento das leis, pagamento de seguro-desemprego e manutenção e instalação de indústrias intensivas em trabalho, isto é, geradoras de grande número de emprego. Em 2008, o Estado gastou 25,1 bilhões de yuans (US$ 3,1 bilhões) nesse seguro, mais as verbas destinadas a cursos de reciclagem profissional e financiamento de novos negócios. Algo interessante no sistema de seguro-desemprego na China é que, para recebê-lo, os trabalhadores devem prestar serviços comunitários e fazer cursos de reciclagem profissional. O Estado também aprovou uma lei de promoção do emprego, de modo a, pelo menos, impedir que o desemprego supere os 4%. Isso levou à criação, entre 2005 e 2010, de mais de 45 milhões de oportunidades de trabalho. 

Embora os salários tenham subido, em média, 6% ao ano, ainda estão longe dos níveis internacionais, mas são compatíveis com os preços locais. Em outras palavras, em termos nominais, relacionados aos salários em outros países, são baixos. Em termos reais, referentes a seu poder aquisitivo, são razoáveis ou elevados. 

Os salários médios mensais dos migrantes em 2006, por exemplo, eram de 953 yuans, ou US$ 125. Pela paridade cambial, esse valor é insignificante. No entanto, pela paridade do poder de compra ou em relação aos preços internos chineses, seu poder aquisitivo é de três a cinco vezes superior a um salário brasileiro equivalente a US$ 125. Os salários médios das estatais, correspondentes a US$ 1.032 em 1999, se elevaram para US$ 4.539 em 2008.

Os trabalhadores também travam diferentes lutas por seus direitos. Apenas em 2005 ocorreram mais de 230 mil disputas trabalhistas, envolvendo cerca de 560 mil trabalhadores. Embora pareça muito, em escala chinesa esses números são pequenos. Os 560 mil representam 0,06% da população economicamente ativa, 0,22% dos trabalhadores urbanos, 0,35% dos trabalhadores das indústrias rurais e 0,46% dos trabalhadores migrantes. 

Com a industrialização e urbanização do país, muitos empregadores, inclusive estatais, sentiram-se estimulados a infringir os direitos dos trabalhadores. Não mais que 20% das pequenas e médias empresas assinaram contratos com seus empregados. Mais de 60% dos trabalhadores só possuem contratos de curto prazo. Governos locais sacrificam os interesses dos trabalhadores na busca de ganhos econômicos. Conflitos relacionados com agressões ao meio ambiente têm se multiplicado.

Nesse sentido, o que distingue a China é a constante preocupação do Estado em estabelecer uma legislação que garanta os direitos dos trabalhadores, com punições severas aos empresários que os agridem. Paralelamente, o Partido Comunista e o governo consideram que a conquista e a consolidação de direitos devem resultar da luta dos trabalhadores, e não do paternalismo estatal. Estão convencidos de que as centenas de milhões de camponeses que se transformaram em operários industriais e trabalhadores de outras categorias urbanas não ganharão consciên­cia de seus novos problemas e de sua força social se não passarem pela experiência da luta de classes. Diferentemente de muitos outros países, o que o Estado e o PC chineses garantem é estar ao lado desses trabalhadores. 

Legislação

Como resultado desse processo, a China possui diversas leis em curso desde o início dos anos 1980. A Lei de Trabalho foi aprovada em 1994, mas seu sistema não protegia suficientemente os trabalhadores nem respondia aos desequilíbrios existentes entre oferta e demanda. Milhares de empresas nacionais e estrangeiras aproveitaram-se dessa brecha e estabeleceram salários e horários de trabalho arbitrários, assim como condições de trabalho e de vida incompatíveis com o conjunto da legislação social. 

Com isso, o projeto da Lei de Contrato, aprovado em março de 2006, acabou por receber o maior número de denúncias e sugestões populares, atrás apenas do projeto de Constituição de 1954. Quase 200 mil cartas chegaram ao comitê do Congresso encarregado do assunto. Todas denunciavam uma gama considerável de discriminações: as dificuldades que os 120 milhões de chineses que contraíram hepatite B enfrentavam para obter emprego, assim como as sofridas por mulheres, deficientes, trabalhadores rurais e os que não haviam recebido educação superior; as diferenças salariais nas estatais, para uma mesma função, entre os trabalhadores oficialmente contratados, com salários mais altos que os dos temporários e com seguro social; as agências ilegais que roubavam o dinheiro de migrantes com promessas de emprego; a ausência de apoio ao primeiro emprego dos graduados nas universidades; a falta de pagamento do seguro social pelas empresas etc.

Outro exemplo de lei de difícil aplicação, em especial pelas empresas estrangeiras, é a que garante o direito dos trabalhadores de se organizar em sindicatos nas empresas, sem necessidade de aprovação dos empresários. Das 100 mil companhias estrangeiras em território chinês, com 25 milhões de trabalhadores, apenas em 40% existem sindicatos.

Vários exemplos foram notórios. A FoxConn, de origem taiwanesa, com 200 mil trabalhadores, tentou impedir a fundação do sindicato em sua unidade de montagem de iPods em Shenzhen. No caso da rede Wal-Mart, com 62 supermercados em várias regiões e mais de 6.000 empregados, foi preciso interferência judicial. Após a criação de sindicatos nessa multinacional, outras empresas estrangeiras – KFC, McDonald’s, Roche, Pepsi, BNP, Kodak – decidiram não mais resistir. 

Atualmente, a Confederação-Geral dos Sindicatos da China (ACFTU, na sigla em inglês) possui 1,17 milhão de federações filiadas, englobando 7,7 milhões de sindicatos de base e 150 milhões de membros. E, apesar de ainda existirem cerca de 500 milhões de chineses vivendo na faixa da pobreza, 800 milhões ascenderam aos diversos patamares da classe média – metade situa-se no nível de classe média alta.

Nessas condições, aqueles empresários brasileiros que supõem o mercado de trabalho chinês como um mar de rosas para a exploração da força de trabalho, sem legislação e sem sindicatos, e pretendem adotá-lo no Brasil podem ter uma surpresa desagradável quando descobrirem que o mito não corresponde à realidade. 

Parceiro incômodo

Dois anos atrás, chineses tornaram-se principais parceiros comerciais do Brasil. Mas preocupam desde Obama até empresários da indústria

“As relações sino-brasileiras adquirem cada vez mais conteúdo estratégico e significado global”, assinala comunicado conjunto dos governos do Brasil e da China divulgado em 12 de abril, durante viagem da presidenta Dilma Rousseff ao país asiático, que incluiu ainda a terceira reunião de cúpula dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Exatamente dois anos atrás, a China ultrapassou os Estados Unidos e tornou-se nosso principal parceiro comercial. Em 2010, as exportações brasileiras para o país asiático atingiram US$ 30,8 bilhões (15% de nossas vendas) e cresceram 46,57% em relação ao ano anterior. Na relação comercial com os chineses, o Brasil teve superávit de US$ 5,2 bilhões. Mais do que as transações, porém, a aproximação entre as duas nações se insere em uma fase de rearranjo de forças globais.

Na visão do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), o Brasil se deu bem ao optar por relações mais profundas com países em desenvolvimento­, casos de China e Índia. “O grupo do Brasil está muito bem posicionado num mundo em que os mercados emergentes são o motor do crescimento mundial”, diz estudo divulgado em março. Por outro lado, há desafios como um possível superaquecimento­ da economia e a apreciação da taxa de câmbio (valorização do real ante o dólar).

Na recente visita ao Brasil, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, reconheceu que é preciso levar o anfitrião mais a sério. “Chegou a hora de tratar o Brasil como China e Índia”, declarou. Mas, para o ex-ministro de Relações Exteriores Celso Amorim, Obama desperdiçou oportunidades, ainda mais se os norte-americanos se incomodam com a crescente influência chinesa na América Latina e na África. “Se os Estados Unidos estão preocupados com isso, podiam ter feito duas coisas: uma é apoiar o Brasil para o Conselho de Segurança (das Nações Unidas). Outra é abrir o mercado de etanol. Porque é dessa maneira que você neutraliza a influência dos outros”, disse Amorim à BBC Brasil. 

As principais ressalvas partem do setor industrial. Enquanto o Brasil tem superávit, a indústria de transformação é deficitária no comércio com os chineses. O presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Paulo Skaf, falou recentemente em práticas desleais de comércio. Para ele, o Brasil não deve reconhecer a China como uma economia de mercado. O atual chanceler brasileiro, Antônio Patriota, disse que a intenção é fortalecer a relação comercial com a China, mas o governo está atento a “questões pontuais” relacionadas a alguns setores. 

Na reunião dos Brics, além de agradecer à China pela liderança demonstrada no encontro, Dilma deixou claro que a influência desses países na ordem mundial será cada vez maior. “Vejam as ironias da história. Até pouco tempo atrás, Brics era apenas uma sigla inventada por um economista do sistema financeiro. Mas a história nos atribuiu responsabilidades crescentes.” 

Por Vitor Nuzzi