Memórias de um sambista

Ex-diretor da Portela tenta estimular o público por músicas carnavalescas antigas

O diálogo a seguir ocorreu na Rua da Relação, no bairro da Lapa, centro do Rio, mais exatamente num portãozinho de entrada do número 3, onde está localizada a sede do Cordão do Bola Preta, o mais antigo bloco de Carnaval do Rio. Quem iniciou o colóquio foi um homem de 71 anos, de bigode branco, elegantemente trajado. Dirigia a palavra ao sujeito que atendera à campainha. 

– Boa tarde. Vou dar uma entrevista e fazer fotos aí no Bola Preta.

– O senhor e o repórter têm autorização para entrar?

– Eu sou o Carlos Monte, amigo do Pedro Ernesto (presidente do bloco).

– O Pedro Ernesto foi almoçar.

– Então deixe a gente entrar. Esperamos no bar. 

– Não posso, senhor.

– Mas eu conheço todo mundo aí. Organizei a homenagem ao Haroldo Lobo…

– Ele trabalha aqui?

– Quem?

– Esse tal de Haroldo Lobo.

– Deixa pra lá. A gente espera aqui fora o Pedro chegar.

Pesquisador do samba carioca, ex-diretor cultural da Portela, Carlos Monte iniciou a entrevista em pé mesmo, em frente ao portão, sob o calor infernal do centro do Rio. Estava mais resignado do que irritado. Ele não ficou nada surpreso em constatar que o porteiro nunca ouvira falar de Haroldo Lobo, o mais talentoso compositor carnavalesco do Brasil – ao lado de Braguinha e Lamartine Babo. 

Até há pouco tempo, Monte usava um método peculiar para testar o índice de popularidade de Haroldo, morto há mais de 40 anos, mas autor de marchinhas que se eternizaram no imaginário carnavalesco, como Índio Quer Apito e Alá-lá-ô, entre outros grandes sucessos. A pesquisa era feita dentro do táxi, seu meio de transporte favorito. Antes mesmo de dizer o itinerário, Monte começava a cantarolar uma marchinha do compositor. Diante do estranhamento do motorista, perguntava: “Você sabe quem é o autor dessa canção? Se adivinhar, pode mudar para bandeira 2”. O taxista chutava todos os nomes possíveis, de Zeca Pagodinho a Diogo Nogueira, e nada de virar a bandeira. Monte, então, dava a primeira dica. “Haroldo…” E o motorista dizia, animado: “Haroldo Costa!”, citando o nome do ator e escritor carioca. “Não, errou”, avisava o passageiro. Um longo silêncio e um novo pulo do motorista, entusiasmado. “Lembrei! Haroldo de Oliveira!”, citando agora o nome de outro ator, esse já falecido, que fez sucesso no Zorra Total, humorístico da TV Globo. “E o mais impressionante é que eu testava apenas taxistas com mais de 60 anos”, afirma o pesquisador.

Carlos Monte é uma espécie de eminência parda do chamado samba de raiz carioca, denominação relativamente nova que serve para diferenciar o samba de mestres como Cartola, Zé Kéti, Geraldo Pereira, Candeia, Wilson Batista e Nelson Cavaquinho do que é feito hoje em dia, sobretudo pelas escolas de samba. “O desfile virou um espetáculo midiático e turístico, sem nenhuma expressão cultural digna de nota”, diz Monte. “Restam as escolas do grupo de acesso, que desfilam na Estrada Intendente Magalhães, na zona norte do Rio; elas ainda guardam a força de suas características originais”, completa o pesquisador, com a autoridade de quem dirigiu a Portela no começo dos anos 1970, numa das fases mais gloriosas da escola de samba, e escreveu, junto com João Batista Vargens, o livro A Velha Guarda da Portela (Editora Manati), referência entre pesquisadores do gênero. 

Atualmente, engenheiro aposentado, Monte organiza shows para resgatar a música brasileira. Os mais recentes foram apresentados na sede do Bola Preta, um dedicado à obra de Haroldo Lobo e outro mostrando parcerias carnavalescas de compositores nascidos em torno de 1910 – ambos com a participação do Sururu na Roda, grupo de samba formado por jovens que sabem quem foi Haroldo Lobo. “Tenho interesse em continuar nessa linha, estimulando o gosto do público pela música carnavalesca de outrora, com seu romantismo e suas sátiras de costumes”, diz Monte, que deve organizar outros shows em 2011. “Estou com diversas ideias na cabeça, nada ainda­ concreto para anunciar. Mas certamente quero continuar a parceria com o Bola Preta, que vem dando certo.”

Pedro Ernesto, presidente do Cordão do Bola Preta, já havia chegado do almoço. Estranhou ao ver o amigo suando em bicas, parado em frente ao portão. Os dois caminharam abraçados até o bar do bloco carnavalesco, decorado com um imenso painel com fotos dos sambistas que ajudaram a construir a história do Bola Preta, fundado em 13 de dezembro de 1918, na Rua da Glória. Monte identificou um a um os sambistas homenageados no painel. Ele deve ao Cordão e aos programas da Rádio Nacional seu interesse por música popular, especialmente por samba. 

“Meus pais gostavam de música, mas não se interessavam tanto assim. Nunca tive um músico na família. Acabei na Portela por paixão mesmo.” No começo dos anos 1970, Monte assumiu, a convite de Hiram Araújo (pesquisador, um dos grandes nomes da história da Portela), o Departamento Cultural da escola de samba de Oswaldo Cruz, bairro da zona norte carioca. Responsável por todas as atividades ligadas aos desfiles, estreitou os laços com seus ídolos de juventude, nomes como Candeia, Zé Kéti, Valter Rosa, Ratinho, Valdir 59, Wilson Moreira, Noca e Jabolô. Ficou, porém, apenas três anos no cargo. “O trabalho na Portela me tomava duas noites por semana e acabou ficando incompatível com minha rotina de engenheiro.”

Distante do convívio diário na Portela, Monte jamais quebrou o vínculo com a escola do coração. Além do mais, sua filha, a cantora Marisa Monte, virou uma espécie de embaixadora portelense. Gravou discos ao lado da Velha Guarda e promoveu homenagens aos grandes compositores da escola. A modéstia de Monte impede que o pesquisador assuma sua influência no trabalho de Marisa, uma cantora que se notabilizou pelo bom gosto na escolha do repertório, privilegiando compositores do começo do século passado, sobretudo sambistas. “Ela tem um gosto apurado e se interessa por tudo o que é bonito na música. Fatalmente, sendo minha filha ou não, acabaria se aproximando da Velha Guarda da Portela, como de fato aconteceu, aos poucos”, diz o pai de Marisa. “É claro que isso me deixa muito orgulhoso, pois a música portelense mora no meu coração.” 

Para terminar, Monte é provocado a contar histórias de seu tempo de diretor da Portela. “Histórias? São tantas, mas, como diz o grande Monarco, “se eu for falar da Portela, hoje eu não vou terminar…”