Coração por inteiro

(Ilustração: Vicente Mendonça) Soube que seria tia pelo telefone, mal conseguia falar com meu irmão, tamanha euforia, lembrei dele ainda bebê em meu colo. É impressionante como os ciclos naturais […]

(Ilustração: Vicente Mendonça)

Soube que seria tia pelo telefone, mal conseguia falar com meu irmão, tamanha euforia, lembrei dele ainda bebê em meu colo. É impressionante como os ciclos naturais são imbatíveis no quesito preenchimento existencial. Passado o alvoroço, meu irmão começava a se abater com preocupações referentes ao convênio médico e aos procedimentos a que seria submetida a minha sobrinha, a Lorena. A pequena havia sido diagnosticada, ainda no ventre materno, com uma malformação cardíaca. Em português claro, ela não tem uma parte do coração, mas para nosso alívio o problema pode ser corrigido com três cirurgias.

Lorena nasceu e foi direto para a UTI, preparar-se para a primeira correção. Frequentei a sala de espera do hospital por quase um mês, olhando-a pelo vidro, enquanto meu irmão e minha cunhada ficavam lá dentro. Observei outros pais de UTI, casais que passam semanas ou meses aguardando o tempo próprio da recuperação. Tudo isso envolve tristeza, e não tenho como provar o quanto isso tudo também é seu oposto, um grau da alegria. Mas como? Por uma simples razão: o corpo tem defesas que a emoção desconhece. O corpo traz a sensação do sentimento, é a expressão dele, as mães choram sem teatro. Um choro pequeno que o cotidiano trata de torná-lo simples, uma manifestação necessária.

Neste momento, Lorena está em casa, já dormiu sobre a barriga dos pais, e presenciei minha mãe tornar-se avó na primeira vez em que ninou a neta. Não há vertigem mais radical que essa, as histórias dos corpos com seus códigos genéticos e amorosos se aflorando na ausência, nesse caso, de um pedacinho do coração da Lorena que só não está manifesto, mas já está refeito em nosso colo. Um coração aristotélico que, se não está em ato, está em potência.

Os pais de UTI recolocam os problemas rotineiros em seus lugares reais, a saber, na área de serviço, e não mais na sala de estar. Não se trata de camuflar uma questão menor pela maior, é uma assepsia do pavilhão emocional. A UTI não é terapia de amadurecimento, evidente, embora isso aconteça. A minha descoberta é que a UTI não é o lugar de quem está em vias de perder a normalidade dos dias nem sinal de fracasso ou perturbação da realidade – ela é passagem e, como tal, transitória e fluida. O que mais me impressionou nas mães é que elas suspendem o tempo habitual, o dos relógios, para entrar no tempo da recuperação, no tempo da vida, das profundezas celulares, no mistério maior. 

Nesse ambiente é oferecida ajuda psicológica, que nem sempre socorre, embora seja fundamental. Em alguns casos, tratam as mães como doentes emocionais, dão nome à coisa ainda disforme, sentimentos fortes prontos para receber significados mais leves, e não técnicos. Mas mãe também é mãe de si e se protege. No que uma psicóloga se aproximou da minha cunhada, dizendo fazer parte de um núcleo de pesquisa do luto – só a apresentação dá calafrio –, ela logo se defendeu: “Não quero, obrigada”. Talvez a tia aqui também precise de psicólogo. Por enquanto, o amor tem feito seu trabalho. 

Andréa del Fuego, escritora, é autora da trilogia de contos “Minto Enquanto Posso”, “Nego Tudo” e “Engano Seu” e do romance juvenil Sociedade da Caveira de Cristal. Blog: www.delfuego.zip.net