Na marca do pênalti
Com a reabertura do debate em torno do Plano Diretor, Brasília vive momento decisivo para seus dilemas de cidade que virou metrópole
Publicado 20/04/2011 - 13h20
Com uma frota muito maior do que se esperava, Brasília tem calçadas e canteiros invadidos pelos carros (Foto: Augusto Coelho/ Revista do Brasil)
Brasília viveu seu cinquentenário, ano passado, sob sua maior crise político-institucional. A ponto de o nome do governador José Roberto Arruda e de seu vice, Paulo Octavio, sombrear o dos fundadores Juscelino Kubitschek, Oscar Niemeyer e Lucio Costa. Após a cassação de um, a renúncia do outro e uma conturbada transição, a capital elegeu o petista Agnelo Queiroz e se encontra diante de momento decisivo, canalizado pelo Plano Diretor de Ordenamento Territorial (PDOT). O plano é uma das principais leis urbanísticas. Um guia de metas de longo prazo, que passa por uma revisão a cada dez anos. A última, feita em 2009 pela Lei Complementar 803, acabou contaminada pelo mar de lama identificado como Mensalão do DEM.
O Ministério Público, em resposta ao episódio, derrubou 60 itens da lei, o que levou o atual governo a promover uma atualização da lei complementar. O órgão recomendou ao Governo do Distrito Federal (GDF) que, ao atualizá-la, restrinja-se a essas lacunas. “Vamos debater com todos os itens considerados inconstitucionais pela forma de proposição e aqueles que forem de interesse público”, diz o secretário de Desenvolvimento Urbano e Habitação, Geraldo Magela. Assim, voltou à discussão, por exemplo, o Setor Habitacional do Catetinho, questionado pela Procuradoria de Meio Ambiente por se tratar de área de manancial.
Magela afirma que o governo fará uma rigorosa regularização fundiária e estimulará proprietários de terrenos irregulares a aderir. Estima-se que mais de 500 mil pobres e ricos ocupem áreas nessas condições. Ele descarta alterar o projeto do Setor Noroeste, bairro dito ecológico cujos apartamentos decolam a partir de R$ 10 mil por metro quadrado. Trata-se de outra iniciativa questionada judicialmente, pela presença de população indígena.
O Distrito Federal é a Unidade da Federação com maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Entre as cidades, detém o terceiro PIB. O ganho de seus trabalhadores é o dobro da média nacional. Em negociações de imóveis, só perde para São Paulo. Por outro lado, ostenta a pior distribuição de renda do país e os empregos se concentram fortemente no Plano Piloto e em poucas das cidades-satélites. As disparidades se refletem numa carência estimada em mais de 100 mil moradias, num exército de pedintes, nas “invasões” (termo local para favelas).
O quadro de cisão vem à tona em polêmicas como a do Setor Catetinho. Movimentos de moradia mencionam o apego dos abastados à segregação, ao desperdício e à apropriação da terra e lembram da ocupação das margens do Lago Paranoá por mansões. “Ou arruma área para habitação, ou vamos ocupar, e aí estraga muito mais”, protestou Carlos Roberto de Oliveira, da Coalizão pela Moradia Popular. “Não dá para ser ‘eu posso e os outros, não’. “
À mesa, os representantes do órgão de licenciamento ambiental e da companhia de saneamento alertaram para o risco de comprometer a captação vizinha de água e de afetar o lago – elemento central da paisagem e do lazer brasilienses e fonte de recursos hídricos cogitada para o futuro próximo. A propósito, uma auditoria do Tribunal de Contas local apontava, já em 2010, risco de desabastecimento.
Para a geógrafa Mônica Veríssimo, as especificidades de Brasília não são contempladas pelo PDOT: “O conteúdo geral reflete o discurso de sempre, de que ‘há muita unidade de conservação’. Só que as questões ambientais estão no centro no século 21, e uma cidade, para continuar na ponta, tem de ser pioneira na sustentabilidade”. Diferentes tipos de proteção ambiental abrangem 93% do DF, com destaque para a Reserva da Biosfera do Cerrado. Mônica questiona a necessidade de expandir a mancha urbana no mapa e põe em jogo o processo de participação.
“O processo de consulta à população foi extenso”, diz o pesquisador Vicente Correia Lima Neto, que entrou na equipe do PDOT no fim do governo Roriz e teve participação central durante o de Arruda. “Foram 165 reuniões, que envolveram 14.878 pessoas.” Para Lima Neto, a conversão das antes chamadas “áreas rurais remanescentes” em áreas urbanas reflete a realidade desses locais.
“O ideal é que se trabalhe com adensamento, aproveitando a infraestrutura já existente”, opina Edvaldo Vasconcelos, diretor do Secovi, o sindicato das empresas do ramo imobiliário. “Mas adensar sem inviabilizar a locomoção das pessoas. O transporte urbano já é o principal problema aqui. Novas vias com custo alto para governo e sociedade estão ficando superadas em dois ou três anos.”
Terra de contrastes
Os problemas se agravam com o crescimento acelerado. No Censo de 2010, Brasília subiu do 6º para o 4º lugar no ranking das cidades mais populosas do país. Apareceu com 2,46 milhões de habitantes. Em dez anos, sua população cresceu 20%. Em maio de 2008, completou 1 milhão de veículos emplacados, e nos últimos três anos essa frota já inchou em 25%. Embora o Plano Piloto – o famoso corpo de avião desenhado por Lucio Costa – também seja conhecido como Brasília, o nome inclui as outras 30 regiões administrativas do Distrito Federal, das quais uma pequena parte corresponde às antigas satélites (ainda chamadas assim). Cidade e Unidade da Federação se sobrepõem, numa condição que não é nem de estado nem município.
O Entorno – termo usado para os arredores de outras grandes cidades – virou a designação oficial dos municípios que orbitam a capital federal (19 goianos e três mineiros). Um conjunto de localidades que responde por 1 milhão de habitantes da Região Integrada de Desenvolvimento (Ride) do Distrito Federal e do Entorno e segue em acelerado crescimento demográfico. “Esse conjunto forma a mais recente das três metrópoles reconhecidas do Brasil, depois de São Paulo e Rio”, ressalta o economista Marco Aurélio Costa, que coordenou cinco Planos Diretores da região. Ele destaca a dificuldade de conciliar as políticas de transporte, saúde e educação entre os vizinhos. “Há uma intensa dependência, pessoas viajam diariamente 40 ou 50 quilômetros para trabalhar.”
“Vamos buscar uma grande força-tarefa com governos, universidades e outras instituições para alavancar o desenvolvimento dessas cidades”, diz o coordenador da Ride no Ministério da Integração, Henrique Oliveira.
O GDF recebeu sugestões para o PDOT até o início de abril e pretende encaminhar o anteprojeto de lei à Câmara Legislativa em 30 de maio. Preservar a biodiversidade sem descuidar das pessoas, zelar pelas riquezas histórico-culturais e incentivar o mercado, reduzir os desequilíbrios no território… Do entendimento que prevalecer para o sentido desses objetivos dependerão os efeitos do Plano Diretor no futuro: se resolverá ou agravará os dramas da capital.