Na marca do pênalti

Com a reabertura do debate em torno do Plano Diretor, Brasília vive momento decisivo para seus dilemas de cidade que virou metrópole

Com uma frota muito maior do que se esperava, Brasília tem calçadas e canteiros invadidos pelos carros (Foto: Augusto Coelho/ Revista do Brasil)

Brasília viveu seu cinquentenário, ano passado, sob sua maior crise político-institucional. A ponto de o nome do governador José Roberto Arruda e de seu vice, Paulo Octavio, sombrear o dos fundadores Juscelino Kubitschek, Oscar Niemeyer e Lucio Costa. Após a cassação de um, a renúncia do outro e uma conturbada transição, a capital elegeu o petista Agnelo Queiroz e se encontra diante de momento decisivo, canalizado pelo Plano Diretor de Ordenamento Territorial (PDOT). O plano é uma das principais leis urbanísticas. Um guia de metas de longo prazo, que passa por uma revisão a cada dez anos. A última, feita em 2009 pela Lei Complementar 803, acabou contaminada pelo mar de lama identificado como Mensalão do DEM.

O Ministério Público, em resposta ao episódio, derrubou 60 itens da lei, o que levou o atual governo a promover uma atualização da lei complementar. O órgão recomendou ao Governo do Distrito Federal (GDF) que, ao atualizá-la, restrinja-se a essas lacunas. “Vamos debater com todos os itens considerados inconstitucionais pela forma de proposição e aqueles que forem de interesse público”, diz o secretário de Desenvolvimento Urbano e Habitação, Geraldo Magela. Assim, voltou à discussão, por exemplo, o Setor Habitacional do Catetinho, questionado pela Procuradoria de Meio Ambiente por se tratar de área de manancial.

Magela afirma que o governo fará uma rigorosa regularização fundiária e estimulará proprietários de terrenos irregulares a aderir. Estima-se que mais de 500 mil pobres e ricos ocupem áreas nessas condições. Ele descarta alterar o projeto do Setor Noroeste, bairro dito ecológico cujos apartamentos decolam a partir de R$ 10 mil por metro quadrado. Trata-se de outra iniciativa questionada judicialmente, pela presença de população indígena.

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O Distrito Federal é a Unidade da Federação com maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Entre as cidades, detém o terceiro PIB. O ganho de seus trabalhadores é o dobro da média nacional. Em negociações de imóveis, só perde para São Paulo. Por outro lado, ostenta a pior distribuição de renda do país e os empregos se concentram fortemente no Plano Piloto e em poucas das cidades-satélites. As disparidades se refletem numa carência estimada em mais de 100 mil moradias, num exército de pedintes, nas “invasões” (termo local para favelas).

O quadro de cisão vem à tona em polêmicas como a do Setor Catetinho. Movimentos de moradia mencionam o apego dos abastados à segregação, ao desperdício e à apropriação da terra e lembram da ocupação das margens do Lago Paranoá por mansões. “Ou arruma área para habitação, ou vamos ocupar, e aí estraga muito mais”, protestou Carlos Roberto de Oliveira, da Coalizão pela Moradia Popular. “Não dá para ser ‘eu posso e os outros, não’. “

À mesa, os representantes do órgão de licenciamento ambiental e da companhia de saneamento alertaram para o risco de comprometer a captação vizinha de água e de afetar o lago – elemento central da paisagem e do lazer brasilienses e fonte de recursos hídricos cogitada para o futuro próximo. A propósito, uma auditoria do Tribunal de Contas local apontava, já em 2010, risco de desabastecimento.

Para a geógrafa Mônica Veríssimo, as especificidades de Brasília não são contempladas pelo PDOT: “O conteúdo geral reflete o discurso de sempre, de que ‘há muita unidade de conservação’. Só que as questões ambientais estão no centro no século 21, e uma cidade, para continuar na ponta, tem de ser pioneira na sustentabilidade”. Diferentes tipos de proteção ambiental abrangem 93% do DF, com destaque para a Reserva da Biosfera do Cerrado. Mônica questiona a necessidade de expandir a mancha urbana no mapa e põe em jogo o processo de participação.

“O processo de consulta à população foi extenso”, diz o pesquisador Vicente Correia Lima Neto, que entrou na equipe do PDOT no fim do governo Roriz e teve participação central durante o de Arruda. “Foram 165 reuniões, que envolveram 14.878 pessoas.” Para Lima Neto, a conversão das antes chamadas “áreas rurais remanescentes” em áreas urbanas reflete a realidade desses locais.

“O ideal é que se trabalhe com adensamento, aproveitando a infraestrutura já existente”, opina Edvaldo Vasconcelos, diretor do Secovi, o sindicato das empresas do ramo imobiliário. “Mas adensar sem inviabilizar a locomoção das pessoas. O transporte urbano já é o principal problema aqui. Novas vias com custo alto para governo e sociedade estão ficando superadas em dois ou três anos.” 

Terra de contrastes

preservação_ameaçada_brasília_AugustoCoelhoOs problemas se agravam com o crescimento acelerado. No Censo de 2010, Brasília subiu do 6º para o 4º lugar no ranking das cidades mais populosas do país. Apareceu com 2,46 milhões de habitantes. Em dez anos, sua população cresceu 20%. Em maio de 2008, completou 1 milhão de veículos emplacados, e nos últimos três anos essa frota já inchou em 25%. Embora o Plano Piloto – o famoso corpo de avião desenhado por Lucio Costa – também seja conhecido como Brasília, o nome inclui as outras 30 regiões administrativas do Distrito Federal, das quais uma pequena parte corresponde às antigas satélites (ainda chamadas assim). Cidade e Unidade da Federação se sobrepõem, numa condição que não é nem de estado nem município.

O Entorno – termo usado para os arredores de outras grandes cidades – virou a designação oficial dos municípios que orbitam a capital federal (19 goianos e três mineiros). Um conjunto de localidades que responde por 1 milhão de habitantes da Região Integrada de Desenvolvimento (Ride) do Distrito Federal e do Entorno e segue em acelerado crescimento demográfico. “Esse conjunto forma a mais recente das três metrópoles reconhecidas do Brasil, depois de São Paulo e Rio”, ressalta o economista Marco Aurélio Costa, que coordenou cinco Planos Diretores da região. Ele destaca a dificuldade de conciliar as políticas de transporte, saúde e educação entre os vizinhos. “Há uma intensa dependência, pessoas viajam diariamente 40 ou 50 quilômetros para trabalhar.” 

“Vamos buscar uma grande força-tarefa com governos, universidades e outras instituições para alavancar o desenvolvimento dessas cidades”, diz o coordenador da Ride no Ministério da Integração, Henrique Oliveira.

O GDF recebeu sugestões para o PDOT até o início de abril e pretende encaminhar o anteprojeto de lei à Câmara Legislativa em 30 de maio. Preservar a biodiversidade sem descuidar das pessoas, zelar pelas riquezas histórico-culturais e incentivar o mercado, reduzir os desequilíbrios no território… Do entendimento que prevalecer para o sentido desses objetivos dependerão os efeitos do Plano Diretor no futuro: se resolverá ou agravará os dramas da capital.