Ele quer ser bandido

Ney surpreende-se por chegar aos 70 com voz e corpo em plena forma, ativo nos estúdios, nos palcos e agora no cinema, como vilão de um clássico dos anos 1960. 'Papel de mocinho ou de gay eu não faço'

(Foto:Rodrigo Queiroz/ Revista do Brasil)

“Esse menino força muito os agudos. Sua voz não vai aguentar”, escreveu, cheio de razão, o crítico de música a respeito do líder da banda Secos & Molhados, sucesso vertiginoso nos anos 1970. O jornalista dava como certa a brevidade da carreira de Ney Matogrosso. Verdade seja dita: nem ele próprio achava que ia muito longe. “Eu não me via rebolando e fazendo tudo o que faço no palco com 50 anos.” Ney está perto de completar setentinha e continua fazendo tudo e mais um pouco. Voltou a trabalhar com teatro (dirige o monólogo Dentro da Noite, estrelado por Marcus Alvisi) e descobriu que sua vocação para cinema não se resume mais a pontas em curtas-metragens. Em junho ele estreia como protagonista na sequência de O Bandido da Luz Vermelha, de Ícaro Martins e Helena Ignez, viúva de Rogério Sganzerla, diretor do primeiro longa, de 1968. Ney está aberto a novos convites, e avisa: gostou de ser vilão.

Mesmo com tantas atividades paralelas, não abriu mão do seu maior prazer: a música. Até o fim do ano promete lançar o esperado disco só com canções inéditas de compositores muito admirados por ele, como Jards Macalé, Itamar Assumpção, Sérgio Sampaio, entre outros “malditos” – rótulo que detesta – e de autores novos, como Vítor Pirralho, descoberto por acaso durante uma leitura de jornal em Maceió. Ney recebeu a reportagem da Revista do Brasil em sua cobertura no bairro do Leblon, no Rio de Janeiro. Conversou sobre tudo, com a habitual franqueza. Bem-humorado, falou de sua infância em Mato Grosso e de sua importância como diretor de Cazuza e do grupo RPM. Irritou-se apenas uma vez, quando o repórter quis saber se seu desempenho sexual também continua acompanhando seu desempenho nos palcos. O intérprete respondeu no melhor estilo Ney Matogrosso. 

Você faz parte do seleto grupo de intérpretes – ao lado de Maria Bethânia e João Gilberto – que não faz nenhum tipo de concessão na hora de gravar seus discos. Recentemente, anunciou que seu próximo disco fará homenagem aos compositores “malditos”, que sempre estiveram à margem do mercado.

A imprensa é que inventou esse rótulo de maldito. Para mim, existe compositor bom e ruim. Eu disse que quero gravar músicas de Jards Macalé, de Itamar Assumpção, de Sérgio Sampaio. E para mim eles estão entre os melhores. Itamar, por exemplo, não é novidade para mim. Já gravei mais de dez vezes. Não estou fazendo nenhum tipo de caridade ao gravar compositores que a imprensa adora chamar de maldito. Se eles vendem discos ou não, pouco importa para mim. Eu quero sempre gravar coisa boa. E no meu próximo disco terá música de gente nova, também.  

Essa é outra característica marcante de sua carreira. Você sempre gravou canções de novos compositores. É um cantor generoso.

Gravo músicas de novos compositores por necessidade, e não por generosidade. Não componho e a maioria dos grandes compositores grava as próprias canções. Não posso me dar ao luxo de depender apenas de um grupo. Nem quero. É claro que tenho o maior prazer de divulgar o trabalho de alguém que está começando, batalhando, mas meu critério de escolha passa sempre pela qualidade. Eu ouvi, outro dia, um trabalho maravilhoso de um cantor de rap alagoano sensacional.  

Qual o nome dele?

Vítor Pirralho.  

Vítor Pirralho?

Sim. Descobri o menino por acaso. Estava no hotel em Maceió e comecei a ler uma matéria sobre ele no jornal da cidade. É um professor de Literatura que faz rap-repente antropofágico de origem afro-indígena.  

Rap-repente antropofágico de origem afro-indígena?

É (risos). Achei diferente. Primeiro, o rap dele não explora a temática do favelado. Começa por aí. Ele faz rap partindo do ponto de vista do índio, da antropofagia. Achei a ideia genial e pedi ao meu produtor que entrasse em contato com o Vítor. Ele apareceu à tarde no hotel, com seu disco, que também é muito forte musicalmente. Já escolhi uma canção para meu próximo trabalho. 

Você foi até sua cidade (Bela Vista, MS) gravar cenas para o documentário Olho Nu, que o diretor Joel Pizzini prepara em sua homenagem. Como foi gravar na casa em que você passou parte da infância? Quais são as lembranças dessa fase de sua vida?

São poucas as lembranças. Fui para o Rio com 6 anos. Gravei imagens na casa da minha avó, em que eu nasci. Caiu um vendaval nesse dia, o piso da entrada da casa estava cheio de folhas secas. Foi bonito. Eu me lembro de minha bisavó, que vivia com um chicote enrolado no pescoço para espantar galinhas e outros bichos que apareciam na casa. 

Ela nunca precisou usar o chicote em você?

Não. Eu não dei trabalho nessa fase da minha vida. Ficava com meus irmãos na varanda, olhando as pessoas passar. Uma vez, um homem, uma bicha, passou em frente de casa e as pessoas apontaram para ele, assustadas. Algumas vaiaram, outras xingaram. E ele mantinha o passo e os trejeitos. Afrontava mesmo. Aquilo me marcou muito. 

Mas você ainda não sabia que era homossexual…

Não! Só foi rolar muito mais tarde, na fase adulta. 

Você foi para o Rio com 6 anos, mas voltou a morar em Mato Grosso do Sul, em Campo Grande, aos 13. Na época, a distância cultural entre as duas capitais era ainda maior que hoje. Não foi difícil para você esse retorno?

Sim. Eu não queria ficar lá. Não acontecia absolutamente nada em Campo Grande. Imagine uma cidade de Mato Grosso do Sul nos anos 1950. O máximo de ousadia que a cidade se permitia era uma sessão de cinema, à meia-noite, todo mês, de um filme pornô. Todos os homens da cidade iam. Eu entrei ali uma vez e não achei a menor graça naquilo. Nem excitado fiquei. Achei apenas estranho. Muitos anos depois, já adulto, fui a um cinema em que havia um número de striptease antes do filme erótico. Ficava na Rua Aurora, na chamada Boca do Lixo, em São Paulo. Continuei não sentindo nada, e até hoje não acho a mínima graça. 

E com quantos anos você voltou para o Rio?

Com 17. Não aguentava mais a vida provinciana de Campo Grande.  

O Rio do começo dos anos 1960 era muito diferente. Você é saudoso de um Rio que não volta mais?

Não sou saudoso de nada. Mas é claro que o Rio era muito melhor para morar do que hoje. As mulheres pegavam lotação com pulseira de ouro, com colar de pérolas, e não acontecia nada. Hoje isso é impensável. Outro dia mesmo eu estava andando pelo Leblon e vi uma mulher sendo assaltada por um bando de pivetes. Ela correu na direção da praia, gritando, e os pivetes atrás. Ninguém fez absolutamente nada. Nenhum policial apareceu. A polícia está toda no morro, né? E a gente aqui, como fica? 

Em quem você votou na última eleição?

Não interessa. Não revelo o meu voto. Mas já sinto algo diferente no novo governo. Tem menos conversa-fiada. É um estilo que me agrada mais. Espero que ela (Dilma Rousseff) faça um bom governo, embora esteja cercada de inimigos, do partido dela e dos outros. A gente vai precisar rezar por ela.  

Você dirigiu cantores, grupos de rock, elencos enormes no teatro. Agora está em cartaz, como diretor, do monólogo Dentro da Noite, estrelado por Marcus Alvisi. Dirigir é um de seus grandes prazeres?

Sempre foi. Agora está sendo ainda mais prazeroso porque posso me concentrar num ator só. Dirigir um elenco grande dá muito trabalho (Ney dirigiu 11 atores na peça Somos Irmãs).  

Como foi dirigir o RPM, o maior fenômeno do rock nacional de todos os tempos?

Foi ótimo.  

NeyMatogrosso_RodrigoQueiroz

O grupo durou pouco. Houve problemas com drogas e disputas internas, típicos de quem faz sucesso muito rápido. Você já percebia ali um despreparo dos integrantes para a fama repentina?

Não, que nada. Eles eram meninos ótimos, tímidos até. O (Manoel) Poladian, empresário da área musical, me procurou no começo dos anos 1980. Queria que eu dirigisse uma banda de rock. Falei para ele do RPM, um grupo que ainda não era sucesso, mas estava com algumas músicas na rádio. Parecia muito interessante, mas meio cru ainda. Eu disse ao Poladian que só toparia dirigi-lo se tivesse total liberdade para fazer o que quisesse. Ele concordou, e eu comecei a trabalhar com os meninos. 

Qual foi sua principal contribuição como diretor?

Eles eram muito travados. Até o Paulo Ricardo tinha problemas para se soltar no palco. Um dia, a gente estava ensaiando debaixo de um calor terrível. Eu disse: “Por que vocês não tiram a camisa? Para que tanta roupa?” Eles ficaram se olhando, meio assustados, mas tiraram. Começou por aí (risos). 

E dirigir Cazuza, como foi?

O Cazuza era o contrário do RPM. Eu precisava torná-lo mais econômico no palco, mais introspectivo. Ele fazia aquelas loucuras todas dele: entrava com cotonete enfiado em cada orelha, botava o pau para fora. E já não era um menino e estava doente, muito debilitado fisicamente. Disse a ele para concentrar sua força no pensamento, sua principal qualidade. Fiz um figurino todo branco, bem leve. Mandei colocar uma luz bem tranquila. Ele aceitou, e deu tudo certo. 

Você também dirigiu Chico Buarque no show Paratodos. Chico é conhecido por sua timidez crônica. Tentou fazer com que ele se soltasse no palco?

Não. Chico Buarque é Chico Buarque. Há artistas que a gente não pode ter a pretensão de mudar. Eu apenas organizei as coisas ao redor dele e dei pequenos toques. Com Nelson Gonçalves foi a mesma coisa. O cara tem 50 anos de estrada. Chegou onde chegou sendo ele mesmo. Quem sou eu para dizer o que está certo ou errado? 

Como foi encarar o desafio de interpretar o protagonista de O Bandido da Luz Vermelha?

Eu já havia feito algumas participações em curtas-metragens e no longa Sonho de Valsa, da Ana Carolina. Mas nunca tinha sido convidado para viver o protagonista. Confesso que fiquei inseguro. Não por causa do tamanho do papel, mas pelo fato de a Helena (Ignez, codiretora do filme) ter me pedido para que eu não ensaiasse. Queria que eu fosse o mais espontâneo possível. Mas no fim deu tudo certo.  

Já surgiram outros convites para fazer cinema?

Já, mas nenhum me interessou. Os diretores querem que eu faça papel de veado. Eu não quero. Quero algo que esteja distante do meu universo, que signifique um desafio para mim. Gostaria muito de fazer outro bandido. Quem sabe um psicopata. Não quero ser o mocinho. Gay muito menos. 

As manifestações de homofobia aumentaram nos últimos anos. O ator Marco Audino, que o interpretou no especial Por Toda Minha Vida, foi proibido por um pastor de participar dos cultos de sua igreja. Houve o caso da agressão na Avenida Paulista…

Fiquei surpreso. Achei que o mundo estava melhorando, mas não está. Está ainda muito atrasado. Agora, ainda bem que o ator foi barrado, né? Não precisa mais frequentar a igreja. Vai fazer muito bem a ele. 

NeyMatogrosso_GerardoLazzari

No dia 1º de agosto você completa 70 anos. Caetano Veloso disse, recentemente, que está curtindo muito seus 68 anos, que está ainda na “infância da velhice”.

Eu não sinto que cheguei à velhice. O único sinal (abaixa a cabeça para mostrar a pequena calvície) é aqui: meus cabelos caíram um pouco. De resto, continuo a mesma coisa. Ainda estou ágil, flexível no palco. O curioso é que eu achava que pararia de cantar aos 50 anos. Que não passaria disso. Os críticos também diziam que a minha voz não iria durar muito, porque eu forçava demais os agudos. Tudo bobagem. Eu não senti a velhice bater ainda. Sei que ela vai chegar, mas não penso nisso.  

E sexualmente, também está no auge?

Está tudo certo. 

Nunca tomou Viagra?

Não. 

Nem pretende tomar?

Nunca tomei e nunca vou tomar. Não preciso. Você quer saber se sobe, é?