Entrevista

Uma baita servidora, pioneira da batalha pela erradicação do trabalho escravo

Sob a batuta de Ruth Vilela, o Brasil tornou-se um dos poucos países do mundo elogiados por assumir a existência de trabalho escravo e infantil e combatê-los com rigor

Ruth Beatriz Vasconcelos Vilela passou no concurso de auditora fiscal na antiga Delegacia Regional do Trabalho de Minas, aos 26 anos, em 1975. O presidente era o general Ernesto Geisel e o ministro do Trabalho, Arnaldo Prieto. Menos de duas décadas depois, entre 1993 e 1994, foi chefiar a Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT). O ministro era Walter Barelli e o presidente, Itamar Franco. 

Entre 1995 e 1998, voltou a comandar a SIT, respondendo ao ministro Paulo Paiva, já no governo Fernando Henrique Cardoso. Afastou-se em 1999 para assessorar o chefe da Casa Civil de FHC, Clóvis Carvalho – que precisava de alguém que entendesse de pepinos como trabalho escravo, trabalho infantil, comunidades quilombolas relegadas ao esquecimento –, e pediu para voltar para a DRT de Minas.

Acreditava que estava quieta em seu canto, em 2003, quando foi chamada de volta à SIT pela amiga Sandra Starling, ex-deputada e então secretária-executiva do MTE, agora sob o governo Lula e subordinada ao ministro Jaques Wagner. Depois de Wagner, vieram os ministros petistas Ricardo Berzoini, Luiz Marinho e o pedetista Carlos Lupi. E ela seguiu intocável.

Quem conhece a briga de foice dos políticos por um cargo no segundo escalão, preenchido por nomeação, sabe que o feito de Ruth Vilela não é normal. No total, foram 13 anos como secretária de Inspeção do Trabalho – sob três presidentes e seis ministros de diferentes partidos. O profissionalismo dessa mulher e a continuidade de seu trabalho têm tudo a ver com seu protagonismo na criação de programas de prestígio internacional, como os de combate ao trabalho escravo e ao trabalho infantil.

Discreta, como boa mineira, pequenina e de fala serena, Ruth Vilela encerrou sem alarde, no início deste ano, um ciclo de 35 anos dedicados ao serviço público. Em seu lugar emplacou a nomeação de Vera Albuquerque, auditora com origem no Rio de Janeiro que, acredita, dará continuidade ao trabalho que até agora chefe nenhum botou defeito.

Em entrevista à Revista do Brasil, Ruth falou de sua experiência, dos avanços conquistados na direção da erradicação do trabalho escravo (foram quase 40 mil trabalhadores libertados desde 1995) e de algumas frustrações.

Você acompanhou a elaboração do Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, não é?

Na verdade, todo esse projeto de erradicação do trabalho escravo fui eu que criei, em 1995. Era um desafio para os governos. O Brasil anualmente era chamado à atenção por organismos internacionais e de defesa dos direitos humanos e não tinha nenhuma ação concreta para essa área. Na época do ministro Walter Barelli, em 1993, havia tomado contato com o problema pela primeira vez. Em 1995, recebi a incumbência do ministro Paulo Paiva de lidar com duas questões prioritárias: do trabalho infantil e do trabalho escravo. Os dados relativos ao trabalho infantil também eram alarmantes.

E como combater o trabalho infantil num país em que a pobreza é grande e se tornou cultural as pessoas desde muito pequenas ajudam a reforçar a renda da família?

Tanto é possível que, se comparar desde os anos 1990 até agora, você verá que nós efetivamente entramos numa fase bastante avançada. Isso em razão de uma série de fatores: nossa ação de fiscalização e repressão, a formação de uma rede bem sólida de parceiros, a sensibilização dos governos esta

duais e municipais e os diversos programas do governo federal que são convergentes – há o Bolsa Família, mas também uma série de atividades, por exemplo, no Ministério dos Esportes, o avanço da educação etc. Tudo isso está fazendo com que efetivamente a gente possa falar que o Brasil está caminhando para a erradicação definitiva do trabalho infantil. Contra outra chaga, a do trabalho escravo, conseguimos avançar bastante, mas não com a mesma velocidade.

O tema é mais polêmico. Há uma dificuldade de se entender os conceitos relacionados ao trabalho escravo. E há uma forte resistência, no Parlamento e na sociedade em geral, daqueles que insistem em dizer que não existe, que o que existe é apenas irregularidade trabalhista. Então, o cenário para erradicação dessa chaga não é tão positivo quanto o alcançado contra o trabalho infantil. As resistências são maiores.

Quais são o setores de maior incidência do trabalho escravo?

Existe no meio urbano e no meio rural, mas predominantemente nas atividade agrícola em geral, sobretudo no segmento da pecuária – e nos serviços ligados a ela, principalmente aqueles de desmatamento para formação de pastos – que tem sido objeto da maior parte das denúncias e, portanto, das ações de fiscalização e repressão. Mas há várias outras atividades em que esse fenômeno ocorre por ocasião dos períodos de colheita das safras.

Com agem os proprietários que usam esse tipo de mão de obra? Eles sabem onde são as regiões com há maiores focos de miséria e pessoas mais suscetíveis ao aliciamento?

Trata-se de um sistema muito bem montado. Intermediários, os chamados “gatos”, fazem o recrutamento dessa mão de obra. Eles sabem onde, geralmente naqueles municípios de IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) mais baixo, e como: mediante falsas promessas de boas condições de trabalho e remuneração. O trabalhador só vai descobrir a realidade quando já está na propriedade e não vai ter nada a receber, porque estará sempre devendo. Fez dívidas com a viagem e ela será crescente e impagável, nos casos clássicos. Não precisa nem de violência para retê-los, pois passam a se endividar ainda mais para adquirir equipamento de trabalho, roupas, comida, medicamentos, bebidas, cigarros etc. Mas existem outros casos, em que o recrutamento pode não ter se dado dessa forma.

Esse é o principal elemento cerceador da liberdade. A pessoa fica retida pela dívida e também pela distância do local onde trabalha. Os trabalhadores rurais, assim como os mais humildes do meio urbano, têm essa coisa de honra, de honestidade, de nunca querer ficar devendo, nem para o mau patrão.

Por exemplo?

No setor sucroalcooleiro. Você tem o recrutamento propriamente dito para as usinas e tem também a migração espontânea, daqueles grupos de trabalhadores que já sabem a determinada época em que vai ter a safra, trabalho pra ele, alojamento etc. Então, não necessariamente vai existir a figura do gato, e a superexploração vai ocorrer de outra forma, pela exigência do ritmo da produção. Então você é compelido a impor um ritmo muito acima do que seria aceitável. E tem os que são dispensados porque não conseguir atingir a meta.

Nesse setor, o fato de a atividade ser extremamente penosa, acarretar malefícios à saúde e à segurança das pessoas, é um trabalho que muitas vezes leva à exaustão – são comuns até mesmo em São Paulo as mortes por exaustão. E no setor sucroalcooleiro a gente identifica também situações positivas, em que as condições de trabalho vêm melhorando, em muitos casos pela ação sindical, pela capacidade de negociação,

Há mais produtores compreendendo, também, a importância de proporcionar melhores condições?

Eles estão compreendendo por duas razões. Pelo diálogo com as próprias lideranças sindicais e pela pressão internacional. Porque hoje, para se situar bem no mercado externo você tem de comprovar que age corretamente em relação ao trabalho e ao meio ambiente. As questões trabalhistas, sociais, ambientais viraram um elemento de competitividade no mercado internacional. Você pode ser uma grande empresa e seu produto pode ser ótimo. Mas se você produz com trabalho escravo, trabalho infantil, tem um altíssimo passivo trabalhista ou degrada o meio ambiente, vai ter dificuldades de se colocar bem no mercado.

Num país do porte do Brasil, economia emergente, o fato de haver notícias de que se reconhece a existência do trabalho escravo e se combate, mais ajuda do que atrapalha a imagem?

É o que a gente entende. Mas a nossa fragilidade é competir com países que varrem a sujeira para baixo do tapete.

Na América Latina, em matéria de trabalho escravo e trabalho infantil, o Brasil é único que admite o problema e age de forma absolutamente transparente. Então, tem esse outro lado negativo, de que quem mais faz, mais apanha. Porque nas regras de mercado algumas questões relacionadas a direitos humanos e problemas ambientais são muito mal empregadas também.

Por exemplo, o Departamento de Estado norte-americano publica relatórios periódicos apontando o dedo para outros países e praticamente dando nota, o país tal tem trabalho escravo, o país tal tem trabalho infantil, e publica relatórios de atividades econômicas. Isso decorre de uma norma legal que rege as atividades do Departamento de Estado e do Congresso americano, altamente conveniente para o próprio país. Os americanos, por exemplo, em relação ao Brasil naquilo que o Brasil hoje venha a competir com os Estados Unidos, geralmente utilizam os dados oficiais para fins absolutamente comerciais.

A base do processo de combate está na fiscalização, certo?

A base é a repressão, que vai cuidar da apuração das denúncias, num processo que envolve integrantes do Ministério do Trabalho, agentes da Polícia Federal e procuradores do Ministério Público do Trabalho.

Mas antes de chegar nessa parte da repressão, o que é preciso fazer, onde está origem do combate, quem denuncia?

Nos casos ligados à atividade rural, historicamente quem mais encaminha denúncias é a Comissão Pastoral da Terra. Principalmente na região Norte, a CPT faz um belíssimo trabalho e as pessoas confiam na entidade para levar denúncias, queixas, as apreensões muitas vezes dos membros da família, até porque o trabalhador propriamente dito está desaparecido. Outras organizações da sociedade civil também nos encaminham denúncias, mas eu diria que entre 70% e 80% das denúncias vêm da CPT.

Algumas denúncias chegam diretamente a nós porque os trabalhadores passaram a conhecer a atuação do Ministério do Trabalho e a procurar ou as nossas unidades (as Superintendências Regionais do Trabalho, SRT, antigas DRT) ou a fazer contato conosco na sede do MTE em Brasília mesmo.
A denúncia tem de ser trabalhada, porque existem casos em que vamos checar e verificamos e não são de trabalho escravo, tal como conceituado na lei.

Isso nos motivou a elaborar um roteiro para fazer uma triagem das denúncias. Vou dar um exemplo: uma denúncia que não fornece dados precisos sobre a localização da propriedade é uma denúncia que dificilmente terá como ser apurada; ou a gente verifica que a denúncia corresponde a casos de irregularidades trabalhistas que podem ser apurados pela fiscalização de rotina, sem a necessidade de mobilizar todo o aparato que envolve os grupos especiais móveis.

E não há também casos em que o trabalhador de uma determinada região vulnerável ao aliciamento reincide, se deixa aliciar, contando com o sistema de repressão e a possível indenização paga aos libertados?

Essa história do chamado “escravo profissional” surgiu ainda no final dos anos 1990, quando nosso trabalho estava começando a ser mais conhecido. Nós entendíamos que era alto ainda o índice de reincidência, do trabalhador que era resgatado e acabava se deixando apanhar de novo. Os próprios auditores do grupo móvel, que é o que mais lida com essa questão, nos relatavam que às vezes encontravam com um trabalhador que ele próprio dizia “o senhor já me resgatou uma vez…” no entanto, nós fizemos um levantamento com base nos dados do seguro-desemprego – que só começou a ser pago aos trabalhadores resgatados a partir de 1993. Para nossa surpresa, de 2003 a 2010 o índice de reincidência de trabalhadores é de apenas 3%.

Além das denúncias e da repressão, há outros procedimentos que foram sendo incorporados para fortalecer a eficácia desse programa, não é mesmo?

Duas coisas interessantes aconteceram. A primeira foi a instituição pelo governo, em 2003, de um cadastro de infratores, conhecido como “lista suja”. Mas não foi criado como forma de sanção ou punição, apenas como um mecanismo de informação. Entram para a lista suja, atualizada a cada seis meses, empresas que passaram pela investigação e por todos os procedimentos administrativos de autuação. Ao final de dois anos, o empregador, se não for reincidente e não tiver mais pendência, é retirado da lista. Somando-se todas as inclusões desde 2003, já passaram pelo cadastro cerca de 400 empregadores.
Outro avanço, e aí o mérito é da sociedade civil e das entidades que tiveram essa iniciativa, é a construção do Pacto Empresarial pela Erradicação do Trabalho Escravo, monitorado pelo Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, pela ONG Repórter Brasil e pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). São grandes empresas e entidades patronais que assumem o compromisso de não negociar com fornecedores que eventualmente estejam envolvidos com trabalho escravo. O monitoramento é feito em toda a cadeia produtiva na qual atuam. Então, esses dois instrumentos – o cadastro e o pacto – eu reputo como modernos e poderosos para contribuir com a erradicação do trabalho escravo.

E a punição para os empregadores infratores é apenas no âmbito trabalhista, com indenizações e multas? Alguém já foi preso por usar mão-de-obra escrava?

Todos os especialistas no tema entendem que a falta de punição é um dos fatores de fragilização do programa e, portanto, mantém distante uma proposta de erradicação definitiva.

Temos alguns casos de prisão mas não temos nenhum tipo de condenação criminal em decisão definitiva. Temos algumas decisões de primeira instância, todas da Vara da Justiça Federal de Marabá. Mas apesar dessa lentidão em matéria de condenação criminal, tem-se avançado muito no âmbito trabalhista.

E quanto à questão da prevenção?

A prevenção, que seria necessária, com precisão cirúrgica naqueles municípios com baixo IDH e que nós já identificamos como municípios fornecedores dessa mão de obra, isso não aconteceu muito. Esses municípios continuam com baixo IDH, as dificuldades de geração de trabalho e renda continuam, o que faz com que essas pessoas continuem procurando trabalho em outro lugar, se não cair na rede do trabalho escravo, provavelmente cai na rede do subemprego ou condições semelhantes.

Outro projeto que elaboramos para atuar de forma bem contundente na prevenção, e que não deslanchou até o momento, é um projeto que a gente denomina Marco Zero, que seria a efetiva intermediação da mão de obra rural para suprimir a figura do intermediário, o gato. O Sistema Público de Emprego historicamente é muito urbano – é orientado pelo governo federal, mas é coordenado por cada estado. Há mais de dois anos a gente tem se esforçado muito para fazer com esse projeto deslanche, e tem sido extremamente difícil.

Por quê?

Você tem de contar  com a boa vontade dos governos estaduais e, eventualmente, municipais. Você tem de capacitar os servidores que atuam no Sine (Sistema Nacional de Emprego), investir recursos, ser criativo, sensibilizar empregadores para que  levem aos Sines a sua demanda por mão de obra, reeducar os trabalhadores para recorrer aos postos do Sine em busca de trabalho. Esse tem sido um trabalho incansável, um desafio para daqui alguns anos.

E a ideia de estimular o empreendedorismo, cooperativismo, a agricultura familiar e a economia solidária nos locais identificados como vulneráveis ao aliciamento?

Seria o ideal, porque os trabalhadores resgatados recebem ao final de cada operação verbas significativas se comparadas com um microcrédito. Tem trabalhador que recebe cerca de R$ 5 mil de indenização. Se eles pudessem ser imediatamente envolvidos em um programa orientador, e saber como aplicar seu dinheiro, como montar um pequeno negócio, seria uma forma de prevenção bastante eficiente.

Durante muito tempo os estudiosos do problema do trabalho escravo diziam que a solução para este seria a reforma agrária. É simplificar demais o problema porque tem um numero significativo de trabalhadores rurais que não têm vocação para a agricultura.

Durante muito tempo os estudiosos do problema do trabalho escravo diziam que a solução para este seria a reforma agrária. É simplificar demais o problema porque tem um numero significativo de trabalhadores rurais que não têm vocação para a agricultura. Isso nas novas gerações tem um impacto. Ao contrário do que as pessoas imaginam, o sonho deles é ter um negócio na cidade. A OIT tem estudos bem interessantes a respeito do perfil desses trabalhadores, ainda não divulgados para o público. A OIT ouviu também proprietários rurais. É interessante saber a visão que eles têm. É uma cultura muito arraigada em relação a direitos humanos, trabalhistas.

Nos últimos anos vinha crescendo o número de autuações, de trabalhadores libertados, mas em 2010 houve uma queda. Isso é devido à falta de dinheiro ou à diminuição das denúncias?

Felizmente não faltaram recursos e o trabalho continuou. Mas temos que relativizar os dados que são divulgados. Se a redução verificada em 2010 se repetir em 2011, pode ser interpretada como uma diminuição do problema. Por uma série de fatores, podemos estar caminhando no sentido da erradicação.

Em que medida a corrupção também é um inimigo do combate ao trabalho escravo?

Em matéria de trabalho infantil e trabalho escravo nós concebemos uma metodologia de trabalho que implicou uma certa imunidade desse problema da corrupção porque trabalhamos com equipes especiais de auditores fiscais que são selecionadas por nós. Os grupos móveis mantêm um vínculo com o órgão central. Há um grande investimento em capacitação dessas pessoas para um entendimento maior do problema não só do ponto de vista jurídico, mas também do social, da questão de direitos humanos. Com a formação dessa rede muito consolidada de parceiros há um monitoramento muito eficaz em relação à implementação desses dois programas.

E outras formas de pressões? Você já notou alguma tentativa de aliciamento por parte de um parlamentar em defesa de um proprietário?

Tive a sorte de sempre trabalhar com ministros que nunca cederam e sempre respaldaram o trabalho. Agora, não posso dizer que a pressão não existe. Porque existe e às vezes é até tornada pública. Mas tem também o outro lado da tentativa de reação, que é legítima. São os empresários que escolhem o caminho do Judiciário. Isso faz parte do jogo democrático. O indesejável é exercer pressão, seja por que meio for, para que alguém dê um jeitinho.

E faz parte da atividade de alguns parlamentares dar um jeitinho?

Historicamente sempre há sempre quem se dispõe a agir dessa forma. Existe também aquele que, procurado por um empresário rural, tem a preocupação de se dirigir ao Ministério do Trabalho para se inteirar e, quando a situação é explicada, ele não mais se manifesta. Quanto ao trabalho dos fiscais propriamente dito, o ministério criou uma corregedoria e conseguiu grandes avanços. No decorrer do governo Lula fizemos uma série de ações contundentes em vários estados que resultaram na prisão de servidores e os processos ainda não têm decisão final. A partir disso conseguimos vencer um sistema. O que se tem notícia, agora, é de fatos no varejo, aqui e ali. Aquela conduta existente em alguns estados, que contaminava toda a corporação, parou de existir.

A PEC do trabalho escravo – que propõe a perda da propriedade por quem usa essa mão de obra – não anda no Congresso porque seria derrotada ou porque, se fosse posta para andar, setores mais atrasados do Congresso retaliariam no andamento de outros interesses do governo?

Eu acho que as chances de aprovação são mínimas, considerando a composição das bancadas atuais, principalmente da chamada bancada ruralista.  Já houve pressão da sociedade em vários momentos, mesmo assim não gerou resultados concretos. Tem abaixo-assinados, tem uma série de coisas, tem todo um conjunto de entidades, até uma delas, formada por artistas, a Humanos Direitos, já conversou com parlamentares, mas nada de resultados até agora.

Mesmo os partidos mais à esquerda ou da própria base aliada do governo nunca deram apoio para a aprovação da PEC do Trabalho Escravo. Parece uma saia-justa para o parlamentar individualmente ou em bloco defendê-la, porque ela propõe uma coisa que atinge o coração do sistema capitalista, que é o direito de propriedade. 

E quanto à fiscalização das condições de trabalho, saúde e segurança nas empresas, houve avanços?

Está havendo pelo menos redução no número de acidentes. Esse dado é significativo porque é um período de geração de emprego, aquecimento da economia. De maneira geral, as condições no comércio, serviços, indústria no Brasil ainda são ruins, o que vem impedindo que a gente avance nos estudos em relação à rápida mudança de tecnologia. Daqui a pouco a gente vai ter de estudar os impactos da nanotecnologia na saúde dos trabalhadores ou questões que envolvem saúde mental. Mas ainda não teremos superado uma fase anterior, se preocupando com fenômenos do século 19.

O empresariado em geral não entende o diálogo com o trabalhador como algo bom para a sua produtividade, apenas vê como empecilho?

O empresário brasileiro não vê as melhorias das condições de trabalho como investimento, mas sim como custo. É a primeira burrice, porque às vezes com uma pequena modificação no ambiente, nas condições de trabalho, ele dilui o investimento rapidamente, com melhoria significativa inclusive de produtividade. Disso decorre a alta rotatividade. Aí o que acontece: o empresário não quer investir em qualificação e capacitação. Acha que fica mais barato não capacitar, não orientar e se o trabalhador não rende o esperado, ele substitui, de preferência antes de um ano de registro para baratear o custo da dispensa. Uma coisa puxa a outra.

A segunda burrice seria a resistência empresarial em aprimorar mecanismos de relação de trabalho?

Sim, precisa fortalecer as entidades sindicais de trabalhadores para sentarem à negociação em condições de igualdade, ainda que a igualdade tenha de decorrer da própria lei – porque às vezes a lei tem de criar um ficção jurídica para gerar esse equilíbrio, já que o trabalho e o capital estarão sempre em desequilíbrio, exceto em poucas categorias mais avançadas.

Trabalhar na Secretaria de Inspeção é muitas vezes lidar com o que há de pior no mundo trabalho. Isso não desanima?

Em minha trajetória tive momentos de grande entusiasmo e de grande depressão. Mas o principal é que consigo me reciclar rapidamente. De repente, um pequeno fato positivo anima a lutar. Sem dúvida há momentos em que você está sob muita pressão e às vezes um projeto desagrada não só aos empresários como às organizações sindicais. Um exemplo claro é o do ponto eletrônico, para controlar a jornada. Aí você para e pensa: não seria melhor deixar do que jeito que está, os trabalhadores sem receber as horas extras e o Estado sem arrecadar? Por que enfrentar tanta oposição, tanta incompreensão, tanto desgaste? Mas quem ocupa esses cargos tem de estar disposto.

Alguma frustração?

No início do governo Lula a gente criou uma comissão sindical de colaboração com a Inspeção do Trabalho, uma estrutura bipartite, seriam as nossas superintendências (antigas DRTs) e os sindicatos, as centrais. O objetivo era que a gente tivesse um trabalho mais próximos das organizações sindicais, inclusive na elaboração do planejamento anual da SIT. Seria um processo de reeducação para um trabalho mais próximo tanto do movimento sindical e como da representação patronal. Foi um sonho que não deslanchou.

E a mineira Dilma, vai deixar você descansar?

Ela não terá preocupação, pois a pessoa que vai me substituir vai dar continuidade ao trabalho e avançar muito mais. Tenho total admiração pela Dilma e acho que fará um excelente governo. Sobretudo pelo fato de ser a primeira mulher presidenta, estarei na torcida incondicional por ela. Mas só na torcida.