De volta à África

Fórum Social Mundial, no Senegal, alerta que o outro mundo necessário passa pelo combate às desigualdades, agravadas nos continentes africano e asiático pelos mercados desgovernados e suas crises

Africana acompanha debates do FSM. Abaixo, Rosane Bertotti, da CUT, durante a Assembleia dos Movimentos Sociais, defende pressão conjunta sobre os governantes (Foto:Leonardo Severo/Revista do Brasil)

“Prazer é sentir o que os outros não sentem. BMW.” “Novo CLS. Sensualidade e bom senso. Mercedes-Benz.” As publicidades estampadas no voo da TAP que conduz a Dacar sinalizam o avesso do “Outro Mundo Possível”, desejado pelos 50 mil participantes de cerca de 120 países no Fórum Social Mundial (FSM), realizado de 6 a 11 de fevereiro na capital do Senegal.

Afinal, quanto resta de humanidade no sistema que cultua um “prazer” que só existe a partir da sua negação a todos os demais? A doentia mensagem explicita a ideologia da oligarquia financeira que controla a política e a economia dos países centrais, ditando receituários aos outros. Assim, países africanos onde 70% da população­ sobrevive da agricultura de subsistência são convertidos em plataformas para exportação de alimentos, transformados em commodities para engordar a especulação.

“A verdade é que as transnacionais do alimento avançam sobre­ o continente, comprando parcelas imensas das melhores terras para exportar, em meio à fome e à miséria generalizadas”, afirma Eduardo­ Castro, jornalista responsável pela TV Brasil na África, que cobriu o FSM.

O escritor moçambicano Mia Couto alerta para “a pressão externa­ neoliberal de desresponsabilizar o Estado e reduzir seu papel”, advertindo que o problema é que as sociedades encontram-se “contaminadas” por valores de uma elite endinheirada que vende o país, pois aspira ser outra, distante da sua origem. “Seu sonho mais erótico não é com uma Mercedes, mas com um Mercedes”, ironiza.

Procurando construir outro mundo, “mais do que possível, necessário”, milhares de sindicalistas, militantes de movimentos e de organizações não governamentais se deslocaram a Dacar para trocar experiências e debater alternativas. Abriram o fórum com uma passeata turbinada pelo levante popular que pôs ponto final à ditadura de Ben-Ali, na Tunísia, e o encerraram pouco depois de o povo egípcio­ ter despachado Hosni Mubarak. Ao longo do evento, cresceu a força da solidariedade a movimentos que continuam chacoalhando os governos déspotas da região, subservientes aos Estados Unidos.

O secretário de Relações Internacionais da CUT, João Felício, vê o FSM como um espaço privilegiado para construir ações comuns e alternativas a um sistema alicerçado na lógica especulativa, na multiplicação das bases militares, na devastação do planeta, na exploração de países e povos. “É preciso fortalecer o papel do Estado e radicalizar a democracia para romper com a ditadura do capital especulativo. A hora é de ação articulada entre o movimento sindical e social”, diz.

Com essa percepção, a Conferência Sindical Internacional, durante o FSM, não se limitou a debater ações do mundo do trabalho no combate à crise, a políticas de valorização salarial e garantia de direitos, mas também o enfrentamento ao preconceito, à situação dos imigrantes, à emancipação das mulheres e negros, a mais espaços para a juventude.

Globalização ameaçadaÁfrica protesto à favor do terceiro mundo - Leonardo Severo

Num dos momentos mais significativos do encontro de Dacar, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez duras críticas ao FMI, ao Banco Mundial e à Organização Mundial do Comércio (OMC), condenando a “anarquia dos mercados e irresponsabilidade de governantes que não souberam ou não quiseram regulá-los”.

De acordo com Lula, há uma consciência cada vez mais forte no mundo quanto ao fracasso do Consenso de Washington. “Aqueles que, com arrogância, nos davam lições sobre como administrar nossas economias não foram capazes de evitar a crise em seus países e no conjunto da humanidade”, declarou, sustentando que as nações antes consideradas periféricas e problemáticas agora são fundamentais para a economia mundial.

O ex-presidente afirmou que em apenas 10 anos “dogmas liberais se quebraram” e pediu que a África tome consciência de sua força: “Milhões de pessoas estão se mobilizando contra a pobreza a que estão submetidas, contra a dominação dos tiranos, contra a submissão dos seus países à política das grandes potências”, observou, referindo-se ao exemplo dos países árabes.

O ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, resgatou o compromisso do governo brasileiro com o Fórum Social Mundial e destacou que é hora de erguer políticas econômicas e sociais entre iguais, e “não entre dominadores e dominados”. Criticando os países europeus por manter políticas segregacionistas, Carvalho apontou a relevância de políticas públicas para que nosso país salde parte da dívida histórica com os afrodescendentes e ressaltou o papel dos movimentos sociais para a construção de agendas positivas.

A presença da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) em Gana e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Moçambique expõe a compreensão brasileira sobre a necessidade de maior integração, de acordo com Carvalho. O ministro-chefe afirmou ainda que a identidade entre clima e solo de algumas regiões brasileiras com a savana africana também possibilita que o Brasil ajude a tornar produtivo o leste do continente e contribua para ações de combate à fome.

Para o presidente da Bolívia, Evo Morales, a falência da globalização neoliberal desafia os movimentos sociais a avançar. “Nossa luta é para salvar a Mãe Terra da devastação e da exploração, da política genocida do imperialismo, do neocolonialismo e do capitalismo. Construamos, juntos, o novo mundo possível, o mundo socialista”, enfatizou.

Ponto alto

Impulsionada pela riqueza de testemunhos e vivências, a Assembleia dos Movimentos Sociais, no dia 10, foi um momento de ápice do fórum. O evento, que reuniu 3.000 pessoas no grande anfiteatro da Universidade Cheik Anta Diop, responsabilizou os bancos, as transnacionais e os conglomerados midiáticos pela crise financeira, econômica, alimentar e ambiental. Os manifestantes condenaram a “política neocolonial” de sangria das nações pelas instituições financeiras internacionais e seu receituário de “ajuste fiscal” e “corte de investimentos”. Diante do recente pacote do governo de Dilma Rousseff, o ministro Guido Mantega, da Fazenda, foi bastante lembrado pela delegação brasileira.

Na assembleia, foi observado o aumento das migrações, dos deslocamentos forçados, do endividamento e das desigualdades sociais em função da crise. Os participantes defenderam ação mundial comum em defesa da soberania alimentar, da paz, contra as guerras colonialistas, ocupações e militarização de territórios.

Reafirmaram também a necessidade de banir do planeta a violência contra a mulher. A declaração final aprovou ainda apoio e solidariedade aos povos da Tunísia, do Egito e do mundo árabe.

Pela Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS) do Brasil, a secretária de Comunicação da CUT, Rosane Bertotti, defendeu a pressão conjunta sobre os governantes como “elemento-chave” para a afirmação de projetos de desenvolvimento que fortaleçam políticas públicas de inclusão social. A assembleia convocou para 20 deste mês um dia mundial de luta contra a multiplicação das bases militares dos Estados Unidos, de solidariedade com os povos árabe e africano e também de apoio à resistência palestina.

O FSM rendeu homenagem a grandes nomes da luta de libertação africana, como Frantz Fanon, escritor e ensaísta da Martinica, que denunciou em sua obra as atrocidades das tropas francesas de ocupação na Argélia, inspirando os movimentos anticoloniais; e Patrice Lumumba, primeiro-ministro da República Democrática do Congo e líder nacionalista. Lumumba foi eleito em junho de 1960, aos 35 anos, quando o país ainda era denominado Congo Belga. Menos de três meses depois, foi deposto por um golpe de Estado. Preso e torturado, teve seu corpo dissolvido com ácido sulfúrico. O assassino e agente colonial Mobutu teve apoio dos Estados Unidos na região entre 1965 e 1997.

Patrimônio da humanidade e da solidariedade

Classificada como Patrimônio da Humanidade, a Ilha de Gorée voltou à cena no planeta. Não mais como campo de concentração e anúncio de extermínio da raça negra nem como centro de estupro ou aniquilação, mas de irmandade, congraçamento e solidariedade entre os povos.CUT na casa dos escravos - Leonardo Severo

No FSM, a CUT do Brasil, com apoio da Confederação Sindical Internacional (CSI) e da Confederação Geral Italiana de Trabalhadores (CGIL), fez da Casa dos Escravos um palco para o lançamento da cartilha Igualdade Faz a Diferença, Políticas para a Igualdade Racial e Combate à Discriminação. Nada mais simbólico – a casa, atualmente transformada em museu, foi um ambiente de horrores construído pelos holandeses em 1776.

De Gorée, bem diante de Dacar, saíram entre 15 milhões e 20 milhões de africanos para servir de mão de obra escrava nos Estados Unidos, no Brasil e no Haiti. Calcula-se que 6 milhões não tenham desembarcado com vida do outro lado do Atlântico.

Na casa de dois pavimentos, visitada pelo Papa João Paulo II e por Nelson Mandela – que chorou ao ver os estreitos buracos onde eram trancafiados os escravos –, a história emana das grossas paredes e ganha vida com a lembrança das meninas violentadas, dos jovens rebeldes jogados aos tubarões, das famílias dilaceradas pela separação, das tribos dizimadas, dos homens tratados como gado pelos senhores para que pudessem enfrentar a dureza do percurso.

A longa viagem era feita em barcos para 250 pessoas, mas abarrotados com 400 – daí se previa a perda de 40% da “carga”, a ser lançada ao mar. A despedida da África era feita na “porta da viagem sem retorno”, embaixo da casa, onde está eternizada, diante do mar, a dor dos que por ali passaram.