Erguidos da lama. A vida após a tragédia na região serrana do Rio

Os habitantes da região serrana do Rio tentam retomar a vida depois da tragédia de janeiro

Rodrigo Queiroz/Rede Brasil Atual
Rodrigo Queiroz/Rede Brasil Atual

Enquanto continuam as buscas por vítimas e por lugares onde alojar quem perdeu a casa, empresários e agricultores voltam à atividade na região serrana do Rio de Janeiro. Com a construção de pontes provisórias pelo Exército e a desobstrução de estradas, o caminho está livre e os empreendedores precisam fazer dinheiro para recuperar os prejuízos. As três principais cidades apostam em seu potencial turístico. Em Petrópolis e Teresópolis, atrações como o Centro Histórico e o Parque Nacional da Serra dos Órgãos não foram afetadas. Em Nova Friburgo, a situação é mais grave. Pontos importantes foram destruídos e o turismo de compras precisa superar o medo dos consumidores de subir a serra. 

Jéssica Amaral é gerente de uma loja de moda íntima no bairro da Ponte da Saudade, em Nova Friburgo. Sua loja, como quase todo o comércio da cidade, ficou fechada por dez dias. “Ficamos sem luz, telefone e água e quase faltaram comida e gás de cozinha. Na primeira semana ninguém trabalhou, não tinha acesso nem transporte. E muita gente estava desalojada ou procurando parentes desaparecidos”, relata.

Nova Friburgo é um polo industrial com empresas de vários segmentos, com destaque para confecções – a cidade é conhecida como capital da moda íntima. Estima-se que 70% das empresas do ramo sofreram prejuízos. Em algumas, o estoque foi arruinado; outras perderam matéria-prima, máquinas foram danificadas.

Embora as confecções maiores tenham esquemas de distribuição eficientes e algumas até exportem, o comércio de lingerie depende do turismo. A cidade recebe sacoleiras e lojistas, que compram por atacado, e também pessoas que vão a passeio. O fluxo de turistas foi interrompido pela tragédia e as empresas lutam para atrair novamente os consumidores. “Estamos ligando para nossos clientes para avisar que estamos funcionando e não há mais perigo. Acho que as pessoas vão esperar até fevereiro para começar a vir novamente”, acredita a gerente.

Salada comprometida

Em Teresópolis, que abastece de hortaliças a região metropolitana do Rio, é difícil calcular as perdas. A região rural sofreu com a enxurrada, a falta de energia, a obstrução de estradas e a queda de pontes. Parte das plantações foi levada pela água e também houve destruição de estufas de produção hidropônica e de mudas. “O que ficou não foi colhido e estragou, porque as pessoas estavam preocupadas em se salvar e procurar seus familiares. Também houve prejuízos por falta de energia elétrica para acionar as bombas de irrigação. Até o que foi colhido se perdeu, pois não foi possível escoar a produção”, conta Fernando Mendes, secretário de Agricultura do município­.

A secretaria não tem números exatos, mas faz estimativas. “Um hectare produz cerca de 5.000 caixas de alface, cada uma com 18 pés. Teve comunidade que perdeu 30 hectares, outra perdeu 20”, informa a agrônoma Ana Paula Pegorer, da Secretaria de Agricultura. Além das perdas dos agricultores, há prejuízos em cascata. “Os lojistas estão com pilhas de cheques que não serão pagos. Os produtores levam equipamentos e insumos e só pagam depois de vender a produção. Logo, não têm como pagar.” O recomeço é difícil por vários motivos. Existem áreas totalmente cobertas de areia, do tipo que se usa para construção. Em outras, todo o solo foi levado, ficou só pedra. “Nesses lugares, não tem como plantar”, diz Ana Paula.

Mesmo onde o estrago foi menor, há dificuldades. Houve mudança na composição do solo e é preciso corrigi-lo para replantar. “A secretaria já está analisando amostras da terra, mas a correção leva tempo”, informa o secretário Fernando Mendes. O replantio exige recursos, o que impõe mais uma dificuldade, já que muitos agricultores perderam tudo. Para a maioria, nem o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) pode ajudar. Muitos não são donos da terra, e assim não têm acesso às linhas de financiamento.

Na localidade de Benfica, em Petrópolis, há perdas em outra atividade forte na região: a movelaria. A Itacenter Móveis, que produz peças com madeira de demolição e restaura móveis antigos, foi atingida pela cheia do Rio Santo Antônio. A água chegou a 2 metros de altura, revirou móveis, quebrou objetos de porcelana e cristal, danificou máquinas. Muita mercadoria pode ser recuperada, já que a água baixou rápido e a madeira de lei resiste, e boa parte do maquinário também será consertada.

“Em duas semanas, tiramos 60 caminhões de lama daqui. Vamos fazer a limpeza, consertar máquinas, deixar a loja bonita novamente”, diz Omar Laskoski, gerente. “Vou ter de ser uma fênix, vou renascer”, declara com os olhos marejados Nádia Isabela Rosa, a proprietária, enquanto revira cadernos tentando recuperar as informações.

Destruição maior ocorreu no Vale do Cuiabá, em Itaipava, mas outros bairros também foram atingidos. Uma cervejaria e uma fábrica de sementes tiveram perdas – a última, que já havia enfrentado problemas em outra ocasião, ameaça deixar a cidade. Os petropolitanos estão aliviados porque a enxurrada poupou a região central, mais populosa. Famosa pelas pousadas luxuosas e pela gastronomia, Itaipava atrai turistas o ano todo, mas, mesmo na alta temporada, o movimento é maior nos fins de semana. “Tudo aconteceu numa quarta-feira, ou a tragédia teria sido maior, com muito mais vítimas”, avalia o prefeito Paulo Mustrangi.

O centro de Petrópolis, onde estão o Museu Imperial, o Palácio de Cristal, a casa de Santos Dumont e as demais construções históricas e atrações turísticas, não foi atingido. Mesmo em Itaipava a maior parte dos hotéis, pousadas e restaurantes está em pleno funcionamento. “Apenas 5% da estrutura hoteleira do município foi afetada. Quem quiser demonstrar solidariedade ao povo petropolitano, venha visitar Petrópolis. Isso garante o emprego das pessoas”, pede o prefeito.

Crédito e solidariedade

O governo federal anunciou a liberação do Fundo de Garantia para habitantes da região – o limite individual é de R$ 4.500. Em seguida, liberou recursos para duas parcelas extras do seguro-desemprego para as vítimas. Dias depois, o governo do estado e as prefeituras dos municípios atingidos firmaram convênio para pagar aluguel social aos desabrigados.

A situação emergencial levou a Caixa Federal, que gere o FGTS e o seguro-desemprego, a organizar um esquema especial. Funcionários de todo o país que se ofereceram como voluntários foram deslocados para as cidades atingidas e a estrutura foi montada. Também foram abertas contas para o depósito do aluguel social. O Banco do Brasil vai intermediar um volume de R$ 400 milhões liberados pelo BNDES, seguindo modelo usado em 2010 para socorrer Alagoas e Pernambuco: juros de 5,5% ao ano, 24 meses de carência e 10 anos para pagar. Para o pequeno produtor rural, o banco anunciou linha de R$ 60 milhões, via Pronaf.

Petrópolis preocupa-se ainda com os microempresários informais, sem acesso a recursos do BNDES. A prefeitura criou uma linha de microcrédito, por meio do Banco do Povo. “Isso ajuda a cabeleireira que teve cadeiras e secadores estragados, a costureira que perdeu as máquinas, o mecânico que ficou sem ferramentas”, observa Mustrangi.

Após estudos de risco, com verba do Ministério das Cidades, houve demolição de 168 residências construídas em áreas perigosas e desapropriação de terrenos para a construção de casas populares. Já há 57 prontas e 72 apartamentos serão construídos em uma área desapropriada pela prefeitura. Até a verba destinada às escolas de samba será usada para desapropriações.

Comida, água, roupas, colchões e outros itens que chegam de todo o país se acumulam em centros de doações. Há também contribuições em dinheiro, e a preocupação com sua destinação levou a prefeitura de Teresópolis a criar o Fundo Especial de Combate à Calamidade Pública. Lançado no final de janeiro e mais conhecido como Fundo de Combate às Enchentes, seu saldo já superou R$ 19 milhões, distribuídos em duas contas. A verba será gerida pela administração municipal e um comitê fiscalizador vai acompanhar sua aplicação. Sindicatos dos bancários, do pessoal do comércio, OAB e Movimento Nossa Teresópolis integram o comitê.

A CUT local e diversas entidades contribuíram com depósitos em contas abertas pelos sindicatos de bancários em Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo. No Rio, o sindicato organizou caravanas nas agências para estimular doações. E a confederação nacional da categoria, Contraf-CUT, negocia com as instituições financeiras iniciativas como a antecipação da PLR para os bancários das cidades atingidas pela tragédia e ajuda aos terceirizados dos bancos.

Entre fotos e figurinhas

O metalúrgico José Lino da Silva, de 59 anos, está desempregado e não pode reconstruir a casa de dois andares e 136 metros quadrados, que construiu há 26 anos, engolida pela avalanche de terra que desceu sobre Nova Friburgo na madrugada do 12 de janeiro. A família inteira – o irmão, a cunhada, uma sobrinha, seu filho e ele – foi salva pelo pedido de socorro de uma vizinha por volta da meia-noite.

Todos correram ao local e tudo estava terra abaixo. Os moradores vizinhos, 11, escaparam ilesos. Ali passaram a noite em vigília. Por volta das 5 horas, José Lino foi até sua casa e a encontrou destruída. Não fosse o telefonema, todos teriam sido soterrados durante o sono. “Saímos de casa com a roupa do corpo. Quem poderia imaginar o que estava para acontecer?”

Passado o impacto inicial, ele voltou para remexer nos destroços e encontrou alguns documentos, roupas e poucos pertences. Perdeu toda a mobília, mas escapou do pior. Pouco acima do morro, 13 pessoas ficaram soterradas. José Lino está hospedado na casa de amigos e acredita que o problema se amenizará com o aluguel social, cujo valor desconhece. Religioso, ele diz que só Deus pode dar força para recomeçar. Também tem fé nas promessas de que o governo vai refazer as moradias destruídas. E sem aumentar o drama, diz: “A vida não vai parar por uma casa”.

Pelo menos a casa o bancário Max Bezerra, que morou a vida toda em Bom Jardim, vizinha a Nova Friburgo, conseguiu salvar. O Rio Grande, que divide a cidade, inundou até áreas consideradas seguras. Primeiro, a água entrou nas moradias próximas às margens, e as pessoas tiveram de ser resgatadas pelos bombeiros. O nível subiu e Max, sua mulher Sílvia e os dois filhos foram retirados de casa, de bote, às 4 da manhã. Salvaram também o cachorro. Max financiou a compra do terreno e a construção pela Caixa. O banco exige laudos que atestem que o imóvel não fica em área de risco.

A casa está alguns metros além da distância exigida, e foi construída sobre pilotis, a 3,5 metros do nível do terreno. A água ainda subiu 80 centímetros pela casa. Roupas, eletrodomésticos­, móveis e objetos pessoais foram perdidos. Estão todos abrigados na casa dos pais de Max.

O município ficou isolado, sem telefone, internet nem energia. Todas as pontes foram destruídas. Quedas de barreiras e desmoronamento de trechos da pista interromperam a ligação alternativa de energia. “Quando a luz voltou, passamos a acompanhar as notícias pela TV. Mas não tínhamos como saber o que estava acontecendo com amigos e parentes que moram do outro lado do rio”, relata Raul, de 19 anos, filho de Max. O jovem participou da limpeza. Retirado o barro, a casa ficou em pé. “Testemunhei a dificuldade que foi para construir”, conta Raul. Para ele, uma perda mais que material foram álbuns de figurinhas, completos, das três últimas Copas do Mundo. As fotografias, preocupação de Sílvia, não se perderam. “Salvamos quase tudo. Só o álbum do nosso casamento ficou danificado, mas vai dar para recordar.”

Muitas famílias bom-jardinenses tiveram a casa destruída, e a prefeitura já informou que vai demolir construções às margens do rio e em áreas de risco. “Vendo as imagens na TV, nos sentimos afortunados, porque não perdemos parentes nem ficamos sem ter para onde ir. Vamos reconstruir. Vai demorar, mas vamos conseguir”, acredita Max.

Preservação para proteger vidas

Relatório do Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura, baseado em verificações feitas dois dias depois da tempestade, concluiu que a tragédia poderia ter sido bem menor. Embora o fenômeno climático em si tenha causas naturais, a destruição maior foi causada pela degradação ambiental e pelas construções em áreas de risco.

Para o agrônomo Agostinho Guerreiro, presidente do Crea-RJ, é preciso reavaliar o que é ou não área de risco. “O desmatamento nas cabeceiras de rios continua, o corte de matas ciliares também. Às vezes temos uma área que não era de risco e, com o tempo, pelo desmatamento e pela ação cumulativa da própria natureza, torna-se perigosa”, avalia.

Quem não entende do assunto acha exagerada a importância que se dá ao desmatamento, mas a explicação é simples. “Quando há árvores, o impacto da chuva no solo é amortecido. A água bate na copa e escorre pelos galhos e pelo tronco. Se a chuva bate direto no chão, a terra vai se soltando mais rápido. E, quando se tem floresta, há mais matéria orgânica no chão, a água infiltra mais lentamente no solo. Se houver pouca matéria orgânica, a infiltração é acelerada, e isso também faz a terra se soltar com maior facilidade”, esclarece o agrônomo.

Com mais de 800 mortos, milhares de desabrigados e desalojados e uma área imensa para reconstruir, o saldo da tragédia na região serrana do Rio de Janeiro é impossível de calcular. Situações como essa expõem, como sempre, falta de planejamento e descuido de autoridades com um problema que, se não pode ser evitado de todo, pode receber medidas preventivas. Ambientalistas acreditam que catástrofes como a do Rio podem se repetir em outras regiões, caso o Congresso aprove as mudanças no Código Florestal defendidas por ruralistas. A dor pode estimular autoridades, especialistas e sociedade a fazer um debate sério e profundo sobre o tema. Discutir e aprender a preservar a natureza e a vida humana. Leia mais sobre esse tema no site, por esses atalhos: http://bit.ly/rba_riscos_1 e http://bit.ly/rba_riscos_2.