Carnaval na tomada

Moraes Moreira relata em livro seu encontro com Dodô e Osmar, os criadores do trio elétrico, critica o mercantilismo no Carnaval de Salvador e enaltece o de Recife

Além de pioneiro e ousados, Dodô e Osmar fizeram escola.Moraes Moreira foi uns dos primeiros cantores de trio elétrico: “Praticamente fui adotado por eles” (Foto:Betrice Franciosini/Divulgação)

O cantor e compositor Moraes Moreira, de 63 anos, 41 dedicados à música, lançou seu segundo livro, Sonhos Elétricos (Ateliê Editorial). Trata-se de uma continuação do primeiro – A História dos Novos Baianos e Outros Versos –, no qual empregou linguagem rimada, feito um cordel, para contar a experiência da famosa banda que marcou época nos anos 1970. Agora, já com narrativa mais convencional, o autor emenda relatos de seu envolvimento com o Carnaval baiano, tendo como pano de fundo sua relação com os criadores do trio elétrico: Dodô e Osmar.

“Esse livro começa onde o outro terminou: em 1975, quando encontro a família Dodô e Osmar, através do filho de Osmar, o mestre da guitarra baiana Armandinho”, explica Moraes. “A primeira parte é bem histórica, pega os Carnavais de 1975 até os anos 1990 e conta particularidades que só quem viu a história por dentro pode contar. A segunda é mais de reflexão sobre o Carnaval da Bahia, que de repente deixou de ser do povo para virar de cordas e abadás, ficando mais elitizado e resultando na minha saída do Carnaval de lá para só voltar em 2010, que é a terceira parte.”

Em 1975, Moraes Moreira deixou os Novos Baianos, que integrava ao lado de Baby Consuelo, Pepeu Gomes, Paulinho Boca de Cantor e Luiz Galvão. O grupo revelou sucessos como Preta Pretinha, Brasil Pandeiro, Acabou Chorare, É Ferro na Boneca e A Menina Dança. “Depois de vivência intensa no dia a dia, morando e tocando juntos, chegou um momento em que as coisas não estavam fluindo tão bem e achei que precisava cuidar da minha vida. Como, junto com Galvão, sou autor da maioria daquelas músicas, levei minha bagagem e continuei de alguma forma coerente com aquele trabalho”, observa.

Foi nessa altura que Moraes Moreira conheceu Adolfo Nascimento, o Dodô (1914-1978), e Osmar Macedo (1923-1997). Estudantes de música e eletrônica, eles pesquisavam uma forma de amplificar o som dos instrumentos de corda, o que conseguiram quando saíram em cima de um Ford 49, tocando instrumentos adaptados às músicas da Academia de Frevo do Recife. No ano seguinte, uma empresa de refrigerantes colocou um caminhão decorado à disposição deles. Moraes Moreira entrou nessa história mais de 20 anos depois, mas tornou-se o primeiro cantor de trio elétrico.

“Modéstia à parte, eu cantei em cima do trio elétrico quando ninguém o fazia e criei um repertório de sucesso de músicas que continuam até hoje no coração e na alma do povo baiano e, por que não dizer, brasileiro. Então, realmente se criou uma escola de cantores a partir desse momento em que foi viabilizada a voz em cima do Trio Elétrico Dodô & Osmar. Praticamente fui adotado por eles”, descreve, tal como havia manifestado na canção Cantor do Trio: “Eu sou um cantor do Brasil / Que canta em cima do Trio / Jogando através do fio / Uma energia pra massa / Eu sou o cantor dessa terra / Que quando canta não erra / O bom cabrito que berra / Grito no meio da praça”.

Da amizade com Dodô e Osmar surgiu um dos maiores clássicos do Carnaval e da música brasileira, Pombo Correio. “Existia uma melodia composta por Dodô e Osmar em 1952 chamada Double Morse, inspirada no código Morse (sistema de sinais pelo qual eram transmitidas as mensagens telegráficas). Pensei em comunicação, e veio a imagem do pombo correio levando uma carta de amor. A música estourou, virou tema de abertura do telejornal Hoje e propaganda institucional dos Correios e Telégrafos.”

Bloco pra quem pode

A intensa relação de Moraes Moreira com o Carnaval da Bahia entrou em crise no final dos anos 1990 e fez com que ele se “exilasse” em Pernambuco. “Até o final dos anos 1970, o Carnaval era lúdico, o pessoal saía para a rua para brincar de graça. Ninguém pagava para ir atrás de trio elétrico. A partir daí vieram os blocos de cordas e abadás, em que se paga, e tomaram conta. O poder público não viu isso e os foliões pipoca, que pulam fora da corda, perderam o Carnaval e os trios. Como ninguém podia reclamar de nada e a Bahia vivia uma oligarquia pesada, eu fui retirado do Carnaval”, lamenta.

Em Pernambuco, Moraes voltou a ter contato com um Carnaval que considera superdemocrático, baseado nas orquestras de frevo e nos blocos de maracatu. “O Brasil tem o Carnaval do Rio de Janeiro, da Bahia e de Pernambuco como matrizes. Além disso, Pernambuco tem uma ligação com a Bahia na versão do trio, porque foi quando a Orquestra Vassourinhas passou na Bahia que Dodô e Osmar tiveram certeza de que o frevo era a música primordial do trio elétrico”, avalia. Em 2010, ele retornou ao Carnaval da Bahia “nos braços do povo”, como gosta de contar.

Sonhos Elétricos acaba sendo um retrato importante não só do Carnaval da Bahia, mas da música brasileira, feito por um personagem que a vivenciou com intensidade. Agora, Moraes Moreira prepara um CD dedicado ao samba, cujo título será Cuidado, Moreira, numa referência a Moreira da Silva, morto em 2000, que ficou conhecido como um dos representantes da malandragem. Nesse álbum, ele passará por todas as formas de samba em dez canções inéditas. “É um universo riquíssimo com o qual tenho muita intimidade, porque sempre gostei, desde os Novos Baianos, quando formamos um regional de samba. Agora quero passear por essa forma brasileiríssima e, ao mesmo tempo, universal”, acrescenta. Outra paixão atual do artista é escrever. “Se estou apaixonado, tudo pode acontecer.”