A atendente

Deveria ter sido uma conversa impessoal, eu cliente do banco, um entre centenas, ela gerente de contas, uma de duas dezenas; por acaso, era a que estava livre, podia fazer-se […]

Deveria ter sido uma conversa impessoal, eu cliente do banco, um entre centenas, ela gerente de contas, uma de duas dezenas; por acaso, era a que estava livre, podia fazer-se de ocupada, mas não, ao contrário, acenou, chamou-me, o senhor deseja alguma coisa, eu disse, você pode me atender, claro, sente-se por favor; ela sorria, descontraída, muito jovem, eu estranhei, atendentes não gostam de atender, viram para outro lado, mexem nas gavetas, falam ao telefone, assim postergam a agressão do cliente seguinte, mais um de ânimo beligerante, com bronca da porta giratória, da demora, da opacidade do banco, mas ela não, mal o outro se levantou já me chamou, como se não quisesse ficar sozinha, quantos anos, não mais que 25, calculei, rosto pequeno e oval, cabelos lisos, olhos brilhantes, os dentes da frente miúdos e protuberantes ao invés de enfeiá-la conferiam-lhe um toque de simpatia, era como se ela fizesse bico ao sorrir, expliquei o que queria, transferir dinheiro da poupança e de um fundo para a conta corrente, não era pouco dinheiro, ela perguntou o senhor vai fazer um investimento novo, eu respondi vou, mas em outro banco, e arrematei, estou com raiva deste banco, mas tanta raiva assim, ela perguntou, muita raiva, eu disse, dá vontade de jogar uma bomba, por exemplo, aí contei o caso do cheque recebido da Inglaterra há três meses que ainda não havia sido descontado, contei o caso do cartão de crédito que não funcionou na Colômbia, resumi porque não queria aborrecê-la, eu mesmo já estava cansado de repetir as histórias a tantos gerentes de contas, ela escutando interessada, de repente levou a mão aos olhos, percebi que estavam avermelhados, discretamente retirou com os dedos duas lágrimas, primeiro de um lado depois do outro, ela estava chorando, pensei, depois fiquei em dúvida, nossa conversa deveria ser impessoal, não, não chorou, deve ter sido um cisco, mas arrisquei, o que eu disse fez você lembrar alguma coisa, ela fez que sim, e então me contou, disse que vinha de uma agência importante no fórum, que ganhava bem, tinha um carro melhor do que tem hoje, mas o serviço era digitar circulares, digitava o dia inteiro, dois anos só digitando, nos últimos meses estava enlouquecendo, trocava números, errava os nomes, o sonho dela era ir para o atendimento, falar com pessoas, e tanto pediu que conseguiu, mas gerente de contas vira saco de pancadas, eu disse, ela respondeu que não se importava, que para ela foi a libertação, ela adora o atendimento, concordou que o serviço era ruim, precisa melhorar, a direção sabe disso, vão dar cursos, vão trocar tudo, as cadeiras, as mesas, eu disse não adianta, não são as cadeiras, são as pessoas, isso aqui parece repartição pública, ninguém sabe nada, só olham a telinha do computador, se está lá respondem, se não está não respondem, ela concordou, mais duas lágrimas, logo se recompôs, eu gosto tanto do atendimento, ela disse, vai melhorar, o senhor vai ver, tem que melhorar, sorriu, fez o biquinho involuntário, simpática; em cada mão levava um anel volumoso, de metal branco. Só ao final perguntei seu nome. Ela havia chorado e eu nem sabia seu nome. Márcia, simpática Márcia, eu disse, você podia pedir à chefia para ser a gerente da minha conta, ela aquiesceu, despedi-me, só então notei a aliança na mão esquerda, semioculta pelo anel. Márcia é casada. Que pena.