O telespectador aprisionado

Todo começo de ano é a mesma coisa: tem Big Brother na TV. Com muito dinheiro dos anunciantes, milhares de candidatos e audiência garantida

Mais que audiência, o Big Brother garante em larga escala o que há de pior nas relações humanas. São momentos em que homens e mulheres abandonam séculos de evolução cultural para se apresentar ao público dotados apenas de instintos naturais, como o sexo e a luta pela sobrevivência. O que escapa desses instintos reduz-se a comportamentos marcados por egoísmo, falsidade e preconceitos.

No Brasil, a primeira versão do que ficou conhecido como reality show apareceu há dez anos com o No Limite. Os participantes eram obrigados a chegar aos limites da sobrevivência comendo, por exemplo, ratos no Mar da China, na versão da CBS, nos Estados Unidos. Por aqui, comeram olhos de cabra. A primeira edição chegou a 56 pontos de audiência. A segunda edição não despertou tanta atenção. Em 2002, veio o Big Brother Brasil, formato da empresa holandesa Edemol espalhado pelo mundo.

Na Europa, esse tipo de programa surgiu com o aparecimento das televisões comerciais. As emissoras públicas sempre foram mais cuidadosas com a qualidade da programação. Big Brothers, portanto, são produtos da desregulação das economias. No Brasil, caiu como uma luva. Juntou jogos e novelas. Programas de auditório, desde o início da TV brasileira, levaram ao ar competições com prêmios e participação de torcedores – ingredientes­ refinados­ pelo Big Brother.

Tudo combinado com o melodrama da novela. Candidatos são selecionados para papéis previamente estipulados. As tramas são desenvolvidas de acordo com as tendências do público. A diferença está na forma de eliminar personagens. Nas novelas, o autor os mata de forma repentina. No paredão do Big Brother, o público participa da execução. Outra característica é a forma seriada. Sempre fica para o dia seguinte algo não resolvido – e novos conflitos surgem a cada dia, até o grande momento em que se escolhe o vencedor.

Aí se percebe a principal contradição. Trata-se de um formato estruturado sob a lógica do confinamento de pessoas monitoradas por dezenas de câmaras de televisão, como se estivessem presas. Mas os participantes se inscreveram voluntariamente, passaram por uma seleção e podem, se desejar, deixar a casa a qualquer momento. Quem está preso, na verdade, é o telespectador, controlado cientificamente com base em pesquisas e vigiado diariamente pelos índices de audiência.

Esses índices estabelecem mudanças de rumo de tramas e resultados dos jogos, com o objetivo de não perder nenhum telespectador. Este se torna presa ainda mais fácil, à medida que se julga livre para escolher outro programa. É uma ilusão, uma vez que as alternativas oferecidas, em especial na TV aberta, são do mesmo nível em termos de conteúdo, mas tecnicamente menos sedutoras. Não há escolha real.

É uma situação curiosa. Faz lembrar uma observação de Marx a respeito dos homens que “sob o domínio da burguesia são idealmente mais livres do que antes (no feudalismo), pois suas condições de vida lhes são fortuitas: na realidade­, porém, são menos livres, pois estão submetidos à coerção das coisas”. Quem acompanha o Big Brother é submetido a uma coerção cultural que vai além da própria televisão. Ela é apenas uma das peças de um tripé do qual fazem parte um sistema educacional ainda deficiente e uma ideologia privilegiadora do consumo e do individualismo.
No livro A Dinâmica dos Reality-Shows na Televisão Aberta Brasileira, o pesquisador Cláudio Ferreira mostra como o Big Brother aborda outros valores sociais. “Temas como sexo, namoro, homossexualidade e racismo são tratados a partir de parâmetros conservadores, mesmo que haja pressões, por parte dos participantes da competição, para que atitudes mais liberais sejam permitidas. Antes de se balizar pela vontade dos concorrentes, a emissora leva em conta a postura do telespectador médio.” Aquele detectado nas pesquisas.

Está claro que a tal realidade vendida ao telespectador é uma farsa. Trata-se de uma cuidadosa manipulação de um pequeno grupo de pessoas elaborada para prender à frente dos televisores uma multidão desprovida de alternativas menos nocivas de lazer e entretenimento.

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