Tristeza não é doença

A tristeza inspira sambas com beleza, dizia o poeta. E contribui para a saúde emocional, atestam especialistas. Mas às vezes é desrespeitada, vista como um mal a ser tratado, inclusive, com remédios

(Foto: Maurício Morais)

Em alguns momentos, os ombros pesam e pendem para a frente. Os olhos, perdidos, parecem buscar algo no chão. O sorriso desaparece do rosto e a vontade de chorar é insistente. Assim é a tristeza, à qual todas as pessoas estão vulneráveis desde que o mundo é mundo. Nem os semideuses escapam. No épico A Ilíada, Homero narra o sofrimento de Anticlea, mãe de Ulisses, por causa da saudade do filho que lutava na Guerra de Troia. Nas palavras simples da monja Coen Sensei, missionária oficial da tradição Soto Hu Zen Budismo, com sede no Japão, “a tristeza aparece nos momentos em que perdemos alguém; quando perdemos; naquelas horas em que as coisas, as pessoas, o mundo e a realidade não são como queríamos; que não somos o que gostaríamos de ser; que não temos o que gostaríamos de ter”.

Psicanalistas, psiquiatras e filósofos, que sempre buscaram entender por que e para que as pessoas ficam tristes mesmo sem motivo aparente, têm explicação parecida. “A tristeza é como uma ferida aberta por perdas afetivas e materiais, decepções, frustrações e doenças­”, compara Paulo José Carvalho da Silva, pesquisador e professor­ da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. Engana-se quem pensa que essa ferida só tem utilidade para os poetas criarem seus versos, como Vinicius de Moraes, para quem “pra fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza”; ou Álvares de Azevedo, cuja poesia era envolta na mais profunda melancolia.

Na verdade, trata-se de uma reação de proteção do aparelho psíquico­, termo cunhado pelo psicanalista austríaco Sigmund Freud (1856-1939) para designar a estrutura mental composta pelo inconsciente, pré-consciente e consciente. “Tudo isso ocorre porque investimos energia psíquica no trabalho, nos relacionamentos, nos projetos pessoais. Se algo se perde ou se quebra em qualquer uma dessas esferas, a ferida se abre”, explica o especialista da PUC. “Para cicatrizar, é preciso um tempo de recolhimento, de repouso, para a sua recomposição. Exatamente como acontece no luto que se segue à perda de uma pessoa amada”, diz.

Carga pesada

O analista de Recursos Humanos Bruno Thadeu Souza, de 26 anos, enquanto estava sem vontade de sair da cama e de comer, fez um balanço de sua vida e, em especial, refletiu sobre a causa de tamanha dor: o fim de um relacionamento amoroso que mantinha havia seis anos. Apesar dos sinais de desgaste que geralmente apontam uma separação, foi pego de surpresa. Pelo telefone, justamente no dia em que ele tinha sido aprovado numa entrevista de emprego, recebeu a notícia do rompimento. “Nos dias entre a aprovação e o início do trabalho, mal saí da cama, perdi a fome, o ânimo e as forças. O bom salário e o novo desafio não fizeram a menor diferença”, diz. Como o desânimo e o desinteresse persistiam, Thadeu não tardou em pedir demissão. Meses depois, ele conta que as lembranças ainda trazem dor, mas sabe que errou ao transferir para outra pessoa a responsabilidade pela sua felicidade. E aos poucos está se reaproximando dos antigos amigos. “Agora é encarar uma nova vida, que tem tudo para ser melhor”, acredita.

A duração, a profundidade e os prejuízos que a tristeza pode trazer dependem da intensidade da causa, do afeto envolvido e da organização psíquica da pessoa. No caso da jornalista Sabrina­ Gisele Becker, de Novo Hamburgo (RS), não foi tão fácil superá-la. Há oito anos ela perdeu o pai – num momento em que familiares e amigos estavam reunidos num fim de semana na praia. “Só quando cheguei ao hospital é que soube que o infarto foi fatal. Encontrei minha mãe segurando os óculos e o boné dele, sem conseguir pronunciar uma palavra”, recorda Sabrina.

“Não esqueço a dor que sentia nos dois primeiros anos que se seguiram. Mesmo com a minha criação germânica, com pouco lugar para a emotividade, eu vivia chorando. Um dia, parei no sinal vermelho, deitei sobre o volante e chorei muito. Despertei com a buzina dos carros.” Segundo Sabrina, a dor era tal que tinha dúvida se valia a pena continuar vivendo. Para aliviar, ela passou a ocupar todo o tempo estudando e trabalhando. Assim a tristeza foi dando lugar à saudade. “Em nenhum momento procurei ajuda, como terapia ou medicamentos. Aprendi e amadureci com a perda. Se tivesse me anestesiado, não teria sentido o que senti nem tido a chance de me fortalecer para a vida e para outras perdas que certamente viverei”, diz.

A perda do amigo Lobão, um boxer de 4 anos que sofria de convulsões, em junho passado, abalou a vida do estudante paulistano de Fotografia Gabriel Duarte, 18 anos. Toda vez que chega em casa ele tem a sensação de que Lobão está à sua espera. “Na hora que eu soube da morte, acho que entrei em choque. Fiquei sem reação. Só me dei conta quando entrei no carro do meu pai e o Lobão não estava lá, no banco de trás, como sempre estava. Senti uma dor muito grande”, relata. “Durante duas semanas eu chorava todos os dias. Até meu pai, que nunca vi chorar, chorou várias vezes.” Para Gabriel, Lobão era um amigo. “Parecia entender o que eu sentia. E ficava sempre por perto, como se cuidasse de mim.”

Deixe a vida fluir

Para se entristecer, porém, não é preciso sofrer na carne experiências dolorosas como essas. Muitas vezes, a notícia de uma tragédia ocorrida do outro lado do mundo, situações que mostram o sofrimento de pessoas desconhecidas, um filme ou mesmo uma música bastam. E há casos, ainda, em que a pessoa é exposta a fatores que têm tudo para deixá-la triste, mas, por alguma razão, é como se nada tivesse acontecido. É a chamada tristeza internalizada, conforme os especialistas, que fica no inconsciente e, mais cedo ou mais tarde, se manifesta – numa crise de medo, angústia ou mesmo numa doença.

Pode ser o que aconteceu com o estudante de Comunicação Luciano Franklin de Carvalho, 22 anos, de Brasília. Entre fevereiro e julho, esteve em Buenos Aires para estudar. Não teve dificuldade de adaptação e conheceu muitas pessoas, fez amigos, ia tudo às mil maravilhas. Até que num dia, entre abril e maio, aconteceu de tudo: a máquina de lavar roupa quebrou, deu problema no banco em que ia tirar dinheiro, chegou atrasado à universidade por causa de uma manifestação contra o aumento do preço da tarifa de ônibus. Ficou angustiado e chorou muito. Então, se conscientizou de que estava longe da família, do seu país, da sua cultura, da namorada.

Sentindo-se inseguro, ele ligou correndo, chorando, para a família. Disse que não conseguiria seguir adiante e chegou a se arrepender da viagem. “Fiquei jururu ainda por uns cinco dias e acabei pegando uma gripe forte. Só não desisti de tudo por causa do apoio da família, amigos, namorada e do pessoal de faculdade em Buenos Aires. Eu me senti querido por eles também, que notavam que eu estava triste e me perguntavam o que estava acontecendo.” As diversas mensagens que Luciano recebeu naquele período o ajudaram a perceber que aquela era uma fase e que as coisas iriam melhorar. E melhoraram mesmo.

“É normal e desejável que se fique triste diante de certas circunstâncias da vida. Anormal seria não se entristecer”, ressalta o psiquiatra Miguel Chalub, professor da Universidade Estadual e da Federal do Rio de Janeiro. Ele explica ainda que há casos em que a tristeza é imotivada ou o motivo alegado não justifica a intensidade do sofrimento, como sintomas físicos intensos e infinitamente maiores que os da tristeza normal. Tampouco é possível estabelecer um prazo que identifique se a tristeza é normal ou anormal, patológica. “Desde que se perceba que a vida pessoal, profissional ou familiar está prejudicada, é preciso procurar um médico”, recomenda.

O negócio da infelicidade

O problema é que na vida moderna não há tempo nem espaço para ficar triste. Tanto que nas listas dos livros mais vendidos estão sempre aqueles que pretendem ensinar o leitor a ser mais feliz. “A nossa cultura não admite mais o sofrimento, que machuca, e é visto como fracasso. As coisas se passam como se o progresso, a tecnologia e o avanço científico tivessem banido a possibilidade de sofrer”, diz Chalub. “Ninguém tem de ser masoquista e gostar de sofrer, mas tem de compreender que o sofrimento, em certas situações, é inevitável e é preciso saber lidar com ele.”

Por outro lado, há quem faça do estar deprimido uma moda. “Tudo deixa as pessoas deprimidas, que hoje preferem recorrer a remédios a encarar o sofrimento”, afirma Chalub. “Infelizmente, mesmo entre os médicos, é costume receitá-los como panaceia. Além do risco dos possíveis efeitos colaterais, me preocupa a ‘medicalização’ dos problemas humanos, todos transformados em doença, dificultando assim a verdadeira solução da questão.” Ele destaca que o clonazepam, princípio ativo de drogas como o rivotril, é o mais vendido e receitado. “Os remédios psiquiátricos, aliás­, são os mais vendidos porque se tornaram falsas soluções para a infelicidade humana e para o mal de viver”, afirma. “A infelicidade não é absolutamente uma doença, mas parte da nossa condição.”

Lançado recentemente no Brasil, o livro A Tristeza Perdida, dos americanos Allan V. Horwitz e Jerome Wakefield, vem colocar lenha na fogueira. Seus autores constatam que a depressão é o distúrbio mais tratado por psiquiatras, elevando assim o consumo de antidepressivos. “Eles precisam identificar com precisão as pessoas com reações emocionais normais e os que sofrem de transtornos depressivos genuínos”, diz Horwitz, diretor da área de Ciências Sociais e Comportamentais da Universidade Rutgers, em Nova Jersey, Estados Unidos.

Segundo seus dados, a depressão atinge, a cada ano, cerca de 10% dos adultos americanos e aproximadamente um quinto da população em algum momento da vida. Entre as mulheres, as taxas são duas vezes maiores. O tratamento ambulatorial da doença cresceu 300% entre 1987 e 1997, e houve um aumento assombroso da prescrição de antidepressivos. Durante os anos 1990, os gastos com esses medicamentos cresceram 600% nos Estados Unidos. Só quando a ciência permitir obter maior controle sobre nossos estados emocionais teremos como avaliar se a tristeza normal tem características reparadoras ou deve ser banida da nossa vida, concluem os autores.

Miguel Chalub enfatiza que o amadurecimento emocional não acontece como fatalidade biológica. “Não somos frutos que amadurecem por lei da natureza. O verdadeiro amadurecimento vem da compreensão­ e do lidar com as circunstâncias da vida, tanto boas quanto más.” Para a monja Coen Sensei, “mesmo a mais profunda tristeza será passageira se as coisas, as pessoas, o mundo, a realidade – e nós mesmos – forem vistos como parte de um processo de transformação. E para que isso aconteça basta lembrar que as coisas, as pessoas, nós, o mundo e a realidade são como são e que podemos apreciar o que temos, em vez de lamentar o que falta. Com essa transformação, que nos inclui, haverá maior compartilhamento e harmonia”, ensina.

Já o palhaço Petecada, do Circo dos Sonhos, na capital paulista – que acredita ser uma dose de alegria sem contraindicações nem efeitos colaterais –, tem uma receita simples. “Aqueles que acreditam sofrer demais com a tristeza deveriam buscar alívio nas coisas mais simples e deixar de lado projetos de vida focados no luxo e no supérfluo, que geralmente só trazem frustração.”