Da margem para a estante

Coleção de filmes que desafiaram o convencional, os bons costumes, a ditadura e até o cinema novo traz mais dois volumes

Liliam M: Relatório Conjugal, de Carlos Reichenbach

Chegaram mais dois volumes da Coleção Cinema Marginal Brasileiro. Um traz de Carlos Reichenbach o longa-metragem Lilian M: Relatório Conjugal (1975) e os curtas Esta Rua Tão Augusta (1969), Sangue Corsário (1979) e O M da Minha Mão (1979). Outro traz de José Agrippino de Paula Hitler 3º Mundo (1968), Maria Esther: Danças na Água (1972) e Céu sobre Água (1978). Quatro pacotes já haviam sido lançados pela Heco Produções e a Lume Filmes. O projeto pretende concluir um total de 12 edições com 40 obras até o final de 2011, entre curtas, médias e longas inéditos de Julio Bressane, Andrea Tonacci, Rogério Sganzerla, Ozualdo Candeias, André Luiz Oliveira e José Agrippino de Paula.

Tonacci já teve contemplados na caixa 1 os filmes Bang Bang (1971), o média Blá Blá Blá (1968) e o curta Olho por Olho (1966). Sganzerla está no volume 2, com o longa Sem Essa, Aranha (1970) e os curtas A Miss e o Dinossauro (2005) e História em Quadrinhos (1969). O volume 3 saiu com cinco títulos de Eliseu Visconti, entre os quais o longa Os Monstros de Babaloo (1970). Cada edição, que custa em torno de R$ 50, tem cópias remasterizadas, extras, entrevistas e muita informação adicional.

O cinema marginal – chamado cinema poesia por Júlio Bressane, ou cinema inventivo, por Jairo Ferreira – surgiu no final da década de 1960, quando vários cineastas brasileiros propunham produções alheias ao sistema oficial de distribuição e exibição, feitas com restos de película. De acordo com Carlos Reichenbach, o trabalho registra a visão de uma parte da Geração 68 que trocou a subversão pela transgressão e deixou como lição o cinema como exercício de liberdade.

De acordo com Eugênio Puppo, da Heco, o movimento abriu portas para um cinema sem amarras, difícil de ser feito pois o governo não deixava e não se conseguia dinheiro. “Seria importante tê-los acessíveis nas prateleiras”, diz, referindo-se aos volumes lançados. Dois filmes são considerados marco inaugural desse cinema: À Margem (1967), de Ozualdo Candeias, e O Bandido da Luz Vermelha (1968), de Rogério Sganzerla, ambientado na Boca do Lixo, em plena região central paulistana – hoje conhecida como cracolândia, e na época um polo produtor e distribuidor dessa cinematografia. O cinema marginal aconteceu também em cidades como Salvador, com André Luiz Oliveira, de Meteorango Kid, o Herói Intergaláctico (1969) – no volume 4 –, Rio e Belo Horizonte, com Júlio Bressane e Neville de Almeida­.

O movimento estabelecia contato com outros movimentos culturais, caso do Tropicalismo, do Teatro Oficina, de José Celso Martinez Corrêa, da poesia de Roberto Piva e Claudio Willer e da arte plástica de José Roberto Aguilar. Vários desses filmes misturavam histórias em quadrinhos e propagandas com o jornalismo sensacionalista e a linguagem do rádio e da televisão. “Nós vivenciamos muita coisa em muito pouco tempo e tínhamos um sentido, sobretudo, canibal da cultura, de buscar uma síntese, utilizando o que havia de melhor ou pior”, define Reichenbach. Influências vinham também do cinema underground norte-americano, representado por nomes como Andy Warhol e Derek Jarman. Glauber Rocha apelidou esse movimento como “udigrúdi”, ironizando-o como uma velha novidade, “cinema barato de câmara na mão e ideia na cabeça”.

A censura e a perseguição do regime militar levaram alguns cineastas a deixar o país. Para Reichenbach, porém, mais determinante para o término do movimento foi a interdição não oficial de duas de suas melhores produções: República da Traição (1970), de Carlos Alberto Ebert, e Orgia ou O Homem Que Deu Cria (1971), de João Silvério Trevisan – liberados somente no início da década de 80.