Triste espetáculo

Meios de comunicação ainda transformam crimes em folhetins macabros e perdem a oportunidade de informar a sociedade sobre como avançar no combate à violência contra a mulher

A notícia do suposto assassinato da estudante e modelo Eliza Samudio, de 25 anos, começou a agitar os telejornais do país no início de junho, quase simultaneamente ao início da Copa do Mundo. O episódio envolvendo uma celebridade do futebol brasileiro, o goleiro Bruno, do Flamengo, dominaria as manchetes de todos os veículos de comunicação durante os dois meses seguintes. Como de costume, a cobertura dita jornalística extrapolou. Chegou-se à exposição de versões detalhadas do crime e das pessoas a ele relacionadas, beirando o macabro.

Com tempo de sobra – dada a eliminação precoce da seleção brasileira no Mundial –, o assunto prestou-se ao ibope das emissoras de TV e de rádio e da internet. Mais uma vez, um crime repugnante foi transformado em espetáculo. O sequestro de Eliza, seguido de cárcere privado, tortura física e psicológica e homicídio brutal, passou a ter tratamento de novela. Mostrado em capítulos disfarçados de boletins informativos, o roteiro levava o espectador a conhecer os muitos aspectos da trama, desde a infância dos personagens principais até a sua ligação com os muitos coadjuvantes. Novos ingredientes eram adicionados à história a cada dia, e sempre havia a promessa de novas informações durante o restante da programação.

Jornais e revistas semanais também entraram na onda. Manchetes e capas passaram a antecipar aos leitores suas próprias versões de “jornalismo investigativo”, em que equipes do tamanho de times de futebol eram destacadas para a produção do material, rico em gráficos, simulações e similares. Os supostos fatos eram acompanhados de análises psicológicas e comportamentais. “Especialistas” eram solicitados a buscar explicações sobre como um personagem de perfil vencedor, um ídolo consagrado, foi levado a cometer um ato de proporções tão bárbaras.

Também se viu que a tragédia havia sido previamente anunciada. A vítima tinha deixado um legado de testemunhos, fotos e mensagens eletrônicas em que indicava que o namorado famoso era cada vez mais uma ameaça. Isso porque, informou a imprensa, ela o pressionava a reconhecer o filho nascido em fevereiro passado. O menino seria fruto de uma aventura, ou uma orgia. Mas ela insistia no reconhecimento da paternidade pelo jogador, que teria exigido o aborto.

Com tanta informação disponível e tantas “evidências”, parte do público começou a formular o seu próprio veredicto. A moça, no final das contas, poderia ter sido a responsável pela própria tragédia. Passou a ser vista como uma golpista, uma maria-chuteira que planejara uma forma de garantir seu futuro e acabou se dando mal.
No fechamento desta edição, no final de julho, o goleiro ainda não havia sido indiciado criminalmente pelas evidências que o envolviam no hediondo homicídio; eram poucas as chances de ele não ser condenado por um júri popular. Mas, independentemente do que vier a acontecer ao jogador, a morte de Eliza passará para a história como mais um ato de violência masculina contra uma mulher.

Ódio, amor e desigualdade

No início deste ano, o Mapa da Violência no Brasil, estudo patrocinado pelo Instituto Zangari com base em informações fornecidas pelo banco de dados do Sistema Único de Saúde (Datasus), mostrou que, no Brasil, dez mulheres são assassinadas por dia – foram 41.532 vítimas de homicídio de 1997 a 2007. A Central de Atendimento à Mulher, pelo telefone 180 (serviço criado e mantido pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, com informações e orientações para situações de violência), registrou 271.719 atendimentos nos primeiros cinco meses de 2010, um aumento de 95,5% em relação a igual período de 2009. De janeiro a maio foram exatos 51.354 relatos de violência, dos quais 29.515 casos de violência física, 13.464 de violência psicológica, 6.438 de violência moral, 1.060 de violência sexual e 207 de cárcere privado.

O relatório traz ainda informações significativas sobre a origem das agressões: 39,8% das denunciantes declararam sofrer violência desde o início da relação; 38% afirmaram que se relacionam com o agressor há pelo menos dez anos e 71,7% residem com o seu carrasco. Ainda que o aumento das denúncias seja um dos resultados visíveis da Lei Maria da Penha, que tenta justamente frear o impulso agressivo de homens contra mulheres, são números que comprovam que o sofrimento imposto à mulher pelo companheiro ainda é um ato cotidiano que corre o risco de ser banalizado.

O tema foi debatido em julho no Fórum de Organizações Feministas para a Articulação do Movimento de Mulheres Latino-Americanas e Caribenhas, em Brasília, no mesmo dia da festa de abertura da Copa do Mundo. Na ocasião, a secretária de Políticas para as Mulheres, Nilcéa Freire, afirmou que a violência contra a mulher acontece com muita frequência e nem sempre ganha destaque na imprensa. “Quando surgem casos que chegam aos jornais, principalmente com pessoas famosas, é que a sociedade efetivamente se dá conta de que aquilo acontece cotidianamente e não sai nos jornais. As mulheres são violentadas e subjugadas todos os dias pela desigualdade.”

A busca das motivações que levam homens a humilhar, caluniar, agredir, ferir e até matar esposas, ex-esposas, namoradas e ex-namoradas mobiliza profissionais, ativistas e estudiosos de áreas diversas. As conclusões comumente apontam para a desigualdade social como fator de risco à integridade física das mulheres pobres, e por isso mesmo o seu sofrimento está fora dos circuitos midiáticos. Essa relação desigual resulta de valores distorcidos que ainda orientam a sociedade e levam a distúrbios de comportamento que extrapolam a condição social de agressores e agredidos.

“Não há como sair à procura de razoabilidade para esse desejo de morte entre ex-casais, pois seu sentido não está apenas nos indivíduos e em suas histórias passionais, mas em uma matriz cultural que tolera a desigualdade entre homens e mulheres”, diz a antropóloga Débora Diniz, da Universidade de Brasília (UnB). Ela ressalta que as razões para episódios violentos patrocinados por homens contra suas mulheres têm outra natureza. “A brutalidade não é constitutiva da natureza masculina, mas um dispositivo de uma sociedade que reduz as mulheres a objetos de prazer e de consumo.”

Decadência

Para ativistas dos direitos femininos, o que se viu na cobertura do caso Bruno seria mais um sinal de que se vive um momento de decadência moral, cujas consequências atingem, entre outros grupos sociais, as mulheres de forma geral. A advogada Sonia Nascimento, que coordena a capacitação de promotoras legais contra a violência doméstica na periferia da capital paulista, avalia que a ânsia da mídia em buscar fatos novos sobre o caso causou absurdos que deveriam levar os próprios canais de comunicação a se envergonhar.

“A gente viu de tudo (durante a cobertura), uma baixaria sem fim. Os jornais condenaram os dois (Bruno e Eliza), mas ninguém condena a mídia”, constata Sonia. “Nos jornais, nas novelas, nos programas de auditório, a todo momento vemos as mulheres tratadas como objeto sexual, além de todo tipo de preconceito e violência. Inclusive contra pobres e negros, e reforçando uma série de valores que não têm mais cabimento em uma sociedade que se pretende desenvolvida.”

A advogada lembra ainda que o noticiário não deu muita importância, por exemplo, ao fato de o goleiro Bruno alegar que as queixas de Eliza não deveriam ser levadas em consideração, uma vez que ele a conhecera numa orgia. “Ele poderá ser condenado por seu envolvimento em um crime, mas o fato de ser homem e famoso parece ter lhe dado o direito de estar acima do bem e do mal. E a gente aceita isso como normal”, observa.
Mais lamentável ainda é que nem todo o exagero da mídia deverá pôr um fim na sucessão de episódios violentos contra as mulheres de todo o país. Segundo Sonia, “tudo faz parte de uma estratégia muito bem pensada, para manter o público ‘anestesiado’, mas sem que se desperte nas pessoas o estímulo para exigir mudanças no atual estado de coisas”. E puxa pela memória recente para lembrar alguns outros casos de mulheres mortas por quem mais deveriam confiar e que tiveram grande repercussão, mas que caíram no esquecimento.

A advogada Mércia Nakashima, baleada e afogada em São Paulo, em episódio que se desenrolava, com menos destaque, simultaneamente ao caso Bruno; a adolescente Eloá, refém do namorado por mais de 100 horas em sua própria casa, até ser baleada pelo rapaz, na região do ABC paulista; Dayana Alves da Silva, no Rio, que teve o corpo queimado pelo ex-marido e passou dois meses internada antes de morrer, no início deste ano; a cabeleireira Islaine de Moraes, de Belo Horizonte, que levou sete tiros do ex-marido enquanto trabalhava, tudo gravado por uma câmera instalada em seu salão (que rendeu bons pontos de audiência), em janeiro passado; o estupro de uma menina de 13 anos em Florianópolis, enquanto dormia por efeito de sedativos, entre os suspeitos estava o filho de um diretor de um poderoso grupo de comunicação na região Sul, o que pode ter contribuído para que o caso não tenha virado mais um espetáculo. Tudo tendo a violência como protagonista. Uma infinidade de casos a aguardar a ocorrência de outros, se nada for feito.

Força de lei

Segundo a pesquisadora Débora Diniz, da UnB, a persistência da impunidade contribui para que a solução dos conflitos entre casais aconteça de forma violenta pela parte masculina da relação, embora os avanços representados pela Lei Maria da Penha sejam importantes. “A aplicação do castigo aos agressores não é suficiente para modificar os padrões culturais de opressão.”

Falta para a humanização do fim dos relacionamentos a instalação definitiva de mecanismos previstos no texto da lei, o que ainda vai requerer um grande esforço de mobilização da parcela da sociedade interessada, mulheres e homens incluídos.

É o caso da capacitação de profissionais que prestam atendimento nas Delegacias Especializadas em Crimes contra a Mulher, da criação dos Juizados Especiais de Violência Doméstica e Intra-familiar, além da consolidação da presença do Estado, garantindo que as polícias protejam aquelas que tentem romper o ciclo violento em que estão inseridas e que tenham o devido acompanhamento jurídico e psicológico fornecidos pelo poder público.

É o caso também de promover a igualdade econômica­ entre homens e mulheres, conforme atestam todos os estudos sobre violência doméstica. O mais recente deles, da organização não-governamental Centro pelo Direito à Moradia contra Despejos (Cohre), que tem sede na Suíça, mostra que a dependência econômica aparece como o principal obstáculo para se romper uma relação violenta. Parte das vítimas (27%) diz ser dona de casa, sem outra ocupação e sem possibilidade de independência financeira.

“O direito a viver em segurança, em paz e com dignidade, precisa ser assegurado pela elaboração de políticas que promovam a ascensão social das mulheres, que ainda são submetidas a salários mais baixos que os homens em ocupação semelhante, no Brasil e na América Latina”, afirma uma das ativistas do Cohre, Mayra Gomez. Acima de tudo, porém, é urgente questionar a cultura diariamente ensinada em nossa sociedade, de que as mulheres existem para que seus corpos estejam à disposição dos homens e que estes têm todo direito de manter pleno domínio sobre elas.

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