Tradição inventada

A partir da criação de mito, dança e batuque próprios, o grupo Seu Estrelo e o Fuá do Terreiro inventou para a capital federal uma tradição popular repleta de imaginário e princípios

Seu Estrelo e Chico Pescado (Foto: Raíssa Tavares/Divulgação)

Pelo Brasil afora, muita gente acredita que Brasília é só uma cidade de concreto e asfalto, artificial. Sem sal, açúcar nem graça. Há, no entanto, muitas formas de se olhar a capital do país. O grupo de cultura popular Seu Estrelo e o Fuá do Terreiro, por exemplo, afirma que Brasília é fora do comum e nasceu para inventar. Movidos pela falta de uma história cultural própria local e pela abertura que a cidade oferece para a criação, o grupo se desafiou a inventar para a sua terra uma tradição popular, que eles chamam de brincadeira.

“A cultura popular é sempre muito ligada ao local, ao passado e à história daquele lugar. Nela, você ouve falar de heróis que nunca ouviria na escola oficial. Você começa a ouvir a sua história sendo contada por quem foi oprimido e isso proporciona uma outra relação com o local”, explica Tico Magalhães, 33 anos, um dos criadores do grupo.

Pernambucano profundamente ligado à cultura popular de sua terra, Tico recebia muitos convites para dar oficinas de maracatu em Brasília, onde mora há 15 anos. Mas sentia que essa tradição não era de lá, suas raízes pulsavam longe do Planalto Central. “A força tinha de estar perto. Alguma coisa tinha de vir e contar a história simbólica dessa cidade”, define ele, que até hoje sai no carnaval de Recife como caboclo de lança no maracatu Piaba de Ouro, criado pelo reconhecido Mestre Salustiano.

Tico diz que, em uma de suas idas a Recife, recebeu de uma entidade espiritual em um terreiro de Xangô a seguinte mensagem: “Se você está procurando uma nação, ela não está mais aqui. Aqui não é mais o teu lugar, você tem de voltar”. Ganhava força naquele momento a criação da brincadeira de Brasília. E como muitas histórias vinculadas à capital, a invenção da tradição popular candanga também teve início de forma mítica ou espiritual.

Mito candango e instigante

O estudioso de mitologia Joseph Campbell­ afirma que os mitos são histórias de nossa busca da verdade, de sentido e de significação através dos tempos. “Todos nós precisamos contar e compreender nossa história”, afirma. Motivado justamente por essa busca do entendimento e da expressão, em 2004 o Seu Estrelo criou o Mito do Calango Voador, fruto da amarração­ de elementos de vários universos e de muita imaginação.
Dividida em três partes, a mitologia retrata na primeira a própria criação: “No tempo em que só existia o dia no mundo, várias coisas viviam e todas tinham um ruído, um canto, uma fala. E assim, toda vez que aparecia um barulho novo, uma nova criatura tomava vida”. Em seguida, o surgimento do Cerrado (com suas caliandras, matas de árvores retorcidas, trombas d’água e um céu que mais parece o mar) e do Calango Voador: “No Cerrado e dessa maneira, nasce o filho do Sol e da Terra”. E, claro, a história da construção de Brasília: “Por isso, junto com Seu Estrelo, a Mata e o Calango inventaram de construir uma nova Coisa, uma fabulosa criatura. Uma nova cidade que abrigaria todos os homens que para o Cerrado vieram para enfrentar a Criatura Comedora de Homens que estava para chegar”.

Trata-se de um mito vivo, já que ele não foi concluído, não está terminado. Repleto de figuras cheias de brilho e força, essa mitologia candanga retrata com bom humor uma verdadeira epopeia sobrenatural de amor à vida e, principalmente, à natureza. Como em outras mitologias, a moralidade e o julgamento não estão presentes, mas a busca pela bem-aventurança, sim.

Segundo a professora Alessandra Simões, integrante da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA), é interessante observar que o Mito do Calango Voador utiliza uma estrutura comum a todos os mitos, de religiosos a artísticos. “Existe uma cosmogonia, um universo novo que é criado para explicar a Brasília e o cerrado reais. A linguagem é poética, subliminar, cheia de meandros e detalhes. Tudo é simbólico e tem sentido, mesmo que a gente não entenda facilmente”, analisa.

» Incitação à cultura

Zé CadêO Seu Estrelo e o Fuá do Terreiro é reconhecido por apoiar e divulgar o trabalho de grupos tradicionais de Brasília e entorno. Por exemplo, nos festivais anuais que promovem – e que já estão no calendário cultural da cidade. A criação do Fórum de Cultura Popular e de uma categoria de cultura popular no Fundo da Arte e da Cultura foram frutos de “muita briga” do grupo.

Outra atividade que repercutiu bem foi a Caravana Seu Estrelo, Rumo à Cidade Mestiça, entre novembro de 2008 e janeiro de 2010. Com um ônibus, os integrantes percorreram cidades satélites e áreas do Plano Piloto e visitaram 12 grupos populares, entre eles o Boi de Seu Teodoro, Martinha do Coco, Cacuriá Filha Herdeira, Folia do Divino de Mestre Badia Medeiros e Mestre Zé do Pife e as Juvelinas. Nos encontros, diálogo, troca de saberes, batuque e remelexo.
Dona Doralice de Oliveira Barbosa, 73 anos, uma das fundadoras da Irmandade Nossa Senhora do Rosário do Carmo do Cajuru, grupo também visitado pela caravana, resume assim esse trabalho junto aos grupos populares: “Só com muito amor no coração para fazer tudo isso”.

Confira:6º Festival Brasília de Cultura Popular, de 6 a 12 de setembro. Gramado da Funarte. Entrada Franca. Acesse também www.seuestrelo.art.br

A roda extrapola o tempo

Com a ideia de ter uma pulsada própria e diferente para Brasília, e inspirado pelo maracatu e pelo cavalo marinho – manifestações pernambucanas de longa e forte tradição –, o grupo trouxe à luz o samba pisado, nome tanto do ritmo como da dança criados por eles. A partir de uma célula rítmica, foram feitas inúmeras dobras e variações. O samba pisado resultou em uma mistura do som das pisadas dos brincantes do cavalo marinho com a pancada do baque­ solto dos maracatus, batida forte e contagiante, daquelas que não deixa ninguém ficar parado.

A “casinha”, uma sede pequena com menos de 100 metros quadrados onde o grupo ensaia, se apresenta e recebe grupos amigos e convidados, explicita que tudo ali tem significado e a forte impressão que se tem é de que nada acontece por acaso no terreiro do Seu Estrelo. Os instrumentos foram “chegando” dentro da proposta de que por meio dos sons se criasse o mundo, preparando o espaço para que as figuras do mito chegassem na roda. A caixa, ligada ao fogo, é a primeira a ser tocada. Como o sol, ela esquenta e inicia a brincadeira. O gonguê vem na sequência, simbolizando o ar.

Seguido pelos abês e o caracaxá, soltos, que representam a água e as chuvas. Por último, entram os tambores, vinculados à terra. Dos 16 integrantes do grupo, nove são músicos ou batuqueiros. Há quatro mulheres.
Em uma espécie de terreiro e picadeiro, a figura do Capitão conduz a apresentação dos demais personagens, de um total de 25. Laiá, a filha da mata, Seu Estrelo, Mané Avesso, Chico Pescador, Caliandra, Zé Cadê, Tromba D’Água, a Véia e, claro, o Calango Voador. Se todos entrarem na roda, a apresentação leva três horas e meia. Segundo Tico, a roda tem a função de trazer os seres fantásticos do mito, ou do Cerrado, para brincar e para as pessoas saberem que essas figuras imaginárias existem.

“Elas são bastante sagradas para nós. Cada figura tem sua dança, sua loa (canto), seu figurino e sua brincadeira. Dentro do mito elas têm uma profundidade maior mas, na roda, são seres que vêm para brincar e divertir, são palhaços que contam pedaços do mito”, esclarece Felipe Gebrim, que interpreta, entre outros, o Seu Estrelo. Os figurinos são brilhantes e coloridos, uma atração à parte na apresentação, já que ajudam a expressar a força e a singularidade de cada personagem. “Estamos fazendo algo novo.

Temos nossas referências, mas não temos padrão nenhum a seguir”, afirma Felipe, referindo-se ao tripé mito-batuque-dança que está na base dessa brincadeira contemporânea e ao mesmo tempo já tradicional, pela história que traz com ela.

Fundamento e respeito

Em seis anos de existência, o Seu Estrelo conquistou um amplo reconhecimento na cidade e na região. Para se ter uma ideia, o primeiro Festival Brasília de Cultura Popular, organizado por eles em 2005, durou um dia, teve a apresentação de três grupos e participação de mil pessoas. Em 2009, 16 grupos de cultura popular de todo o Brasil e um grupo da Colômbia se apresentaram em três dias, para 25 mil pessoas. O grupo lançou o seu primeiro CD que, além de registrar o samba pisado, conta com a participação de Dinda Salustiano, Zé do Pife, Orquestra Marafreboi e do percussionista Petit Mamady Keita, de Guiné. Em 2007, Seu Estrelo foi premiado pelo Ministério da Cultura como grupo de cultura popular tradicional e em 2010 foi reconhecido como Ponto de Cultura.

A postura comprometida parece explicar o sucesso do Seu Estrelo. No início, quando a maior parte do grupo ainda não conhecia muito a cultura popular, Tico explicitou que compreender os fundamentos e respeitar a tradição é essencial. “Tudo tem um porquê na sua tradição. É preciso entender o que é um instrumento, por exemplo, o que significa naquela tradição, por que escolhê-lo. Os elementos do Cerrado são trazidos por nós, mas se as pessoas não se sentirem lavadas e impressionadas, é melhor não trazer. Tudo o que a gente traz de outra tradição tem de ser muito bem feito e cuidado porque senão, em vez de ajudar a perpetuar­ aquilo, a gente vai estar prejudicando.” Além da dedicação aos ensaios (o grupo não tem finais de semana livres, por exemplo), alguns rituais revelam que o Seu Estrelo tem uma preocupação maior, mais espiritual. Os tambores são tocados de lado (não se cruza corda para não cortar energia). O tambor do maracatu chama as pessoas que já viveram na terra, no passado. Não se bebe ou fuma antes das apresentações e ensaios. Há sempre uma música que inicia e outra que fecha os trabalhos. Aos sábados, o ensaio termina dentro da casinha; e os instrumentos só saem da casinha para tocar para o Seu Estrelo, para as figuras. “Essa postura vem dos mestres, que é de quem a gente traz toda essa tradição. Essas relações têm de ser entendidas por quem coloca a alfaia no ombro”, afirma Tico. Ele completa dizendo que o Seu Estrelo sempre contou com o total apoio dos mestres de cultura popular de Pernambuco e de Brasília.

As perspectivas para o Seu Estrelo são promissoras: realização do 6º Festival Brasília de Cultura Popular; o lançamento do livro O Mito do Calango Voador, com novas ilustrações e fatos inusitados, deve ocorrer em dezembro; o trabalho com as comunidades, principalmente a Vila Telebrasília (antiga ocupação com histórico de resistência), deve ser intensificado com oficinas de vídeo, software livre, música e cultura popular; adaptação, para 2011, da apresentação do mito para o teatro de mamulengo; e, o mais importante, a montagem do espetáculo Brasília, uma Ópera Popular Candanga, que deve estrear em 2011.

Parece muito, mas segundo o mamulengueiro Chico Simões, o Seu Estrelo está só começando. “Há um futuro imenso de 360 graus de possibilidades, como o horizonte de Brasília, pela frente. Sinto que está se cumprindo uma vocação da cidade e é real­mente o início de uma tradição. Daqui a 50 anos, Seu Estrelo vai estar irradiando pro mundo todo”, afirma. Oxalá!

 

LaiáUm dia sentada numa pedra Laiá menstrua, corre gritando assustada com o seu sangue lá pra dentro da Mata/ Por onde Laiá passa vai deixando pingos de sangue/ As flores morrem de rir, zombando da cara assustada de Laiá/ A Mata, sua mãe, pede pra Laiá se acalmar e diz que não tem necessidade nenhuma dela estar assustada, que todo aquele sangue nada mais é que vida molhada/ Para mostrar a Laiá a beleza desse momento, a Mata transforma os pingos de sangue de Laiá em Caliandras, cada pingo vira uma flor vermelha… Até hoje são elas que embelezam as Matas do Cerrado quando a seca acontece.
(trecho de A História do Surgimento da Noite,  primeira parte do mito)