No mangue e na moita

Cajueiro da Praia e seus paraísos, como a praia de Barra Grande, tentam se preservar no pequeno e agitado litoral do Piauí

Os moradores de Cajueiro temem as consequências da ocupação desenfreada, que já vitimou praias vizinhas (Foto: Alcide Filho/Divulgação)

A atriz italiana Laura Dondi já viu em alguns meses de Brasil algo que a maioria dos brasileiros não vê em uma vida toda. Está prestes a concluir uma travessia pela costa nordestina. Depois de uma “maratona” de areia e sol desde a Bahia, ela acaba de aportar no pequeno litoral do Piauí, vinda de Jericoacoara, na costa oeste do Ceará. Antes de seguir viagem aos Lençóis Maranhenses, vai gastar uns dias na praia de Barra Grande, no município de Cajueiro da Praia.

A pequena embarcação já vai sair. Espera só a maré subir e encher a veia que sai do rio Camurupim em direção ao mar. O canal é um dos componentes do extenso manguezal e da chamada rota do cavalo-mari­nho, uma das bucólicas atrações do vilarejo. Evandro Carlino da Silva, de 27 anos, e Francisco Júnior, 21, da Associação Nativos Ecotur, se revezam no remo, enquanto descrevem tudo o que sabem sobre a fauna, a flora, a biodiversidade da região, as dezenas de espécies de aves e crustáceos, as ilhotas onde a vegetação de mangue e cerrado se encontram.

Entre uma narração e outra, uma pausa no ruído das vozes e do encontro do remo com a água. O silêncio faz parte do show. Uma multidão de caranguejos observa das margens, entre as folhas e raízes. O barco estaciona. Um cavalo-marinho é retirado delicadamente pelo guia e colocado num recipiente de vidro. Deve estar farto de ser o astro do espetáculo, do olhar curioso dos humanos que não têm mais o que fazer.

Os condutores explicam que é melhor assim.­ Organizar e disciplinar as visitas é uma forma de mostrar detalhadamente o valor daquela biodiversidade, de proteger os bichos dos predadores e, ao mesmo tempo, de fazer desse pedagógico tour ambiental um meio de gerar renda para os ribeirinhos. No fim, essa espécie de hipocampo que escolheu o mangue como morada vai achar que se exibir um pouco de vez em quando vale o sacrifício.

“Só do turismo ainda não dá pra viver”, resigna-se Evandro. Além de receber os turistas – em pequeno número, quando não é fim de ano nem Carnaval – em suas pousadas, bares e lojinhas de artesanato, a comunidade de Barra Grande, com cerca de 1.500 habitantes, vive da pesca e, cada vez menos, da agricultura de subsistência.
Laura vai anotar tudo em seu diário. Quando voltar para casa, em Milão, já tem na cabeça o que vai propor ao grupo. “Vou escrever uma peça sobre o Nordeste brasileiro.” Felizmente, ela aparenta não fazer parte da legião de estrangeiros que vê nas terras e casas “baratas” daquele pedaço pobre do Brasil uma oportunidade de se estabelecer e mudar de vida longe dos padrões europeus.

A chegada de proprietários da Europa – associada à total falta de planejamento e de visão de sustentabilidade nas últimas três décadas – faz parte das mutações da paisagem, da forma de ocupação e das características naturais de muitos refúgios do litoral nordestino. Não é diferente no hoje cada vez mais badalado trecho entre Jericoacoara e Lençóis, passando pelo Delta do Parnaíba, complexo piauiense onde Cajueiro da Praia ainda se esconde com alguma segurança.

Pé atrás

Marcos Cazuza, funcionário da secretaria da escola estadual de ensino fundamental do vilarejo de Barra Grande, conta nos dedos: já são cinco as propriedades adquiridas por franceses e italianos. Ele também participa de uma associação de condutores de turistas, a Barratur, que tenta disciplinar as visitas e garantir que prevaleça o turismo sustentável.

Cazuza é nativo do vilarejo e passou os últimos cinco anos pesquisando a fundo a sua história. Ele colheu elementos que o fazem crer que a comunidade tem sangue gaúcho, pois teria se originado de remanescentes da Guerra dos Farrapos migrados do Rio Grande do Sul, que aprovaram aquela vidinha de pescadores ermitões. Quem não aprovou a chegada deles foram os índios tremembés, integrantes daquele habitat até o início do século 20, quando se sentiram literalmente deslocados pela expansão da população branca. “Já tenho um livro pronto; agora, publicar são outros quinhentos”, brinca.

A comunidade vive um dilema: se aposta ou não em sua vocação turística. “As pessoas­ aqui sabem que é uma faca de dois gumes. Temos a ganhar e a perder. Não podemos correr riscos”, calcula o morador, temendo as consequências da ocupação desenfreada, como a deterioração dos recursos, a especulação imobiliária,­ o turismo sexual e outras formas de violência que já abatem outros ex-paraísos não muito longe dali.

A região fica em uma Área de Preservação Ambiental (APA), o que já ajuda com a imposição de limites à ocupação. Mas a fiscalização é precária. Os próprios moradores se organizam em associações para traçar estratégias de defesa. “Na relação com os visitantes e até com gente da própria comunidade, a gente procura ser didático, explicar que para podermos contar sempre com os privilégios que o lugar nos dá, temos de seguir algumas regras”, conta Evandro.

O condutor mostra um pescador carre­gando algumas dezenas de caranguejos que acabou de extrair do manguezal, apesar das restrições do período de reprodução. “O cara pensa que é esperto, vai vender esse monte de caranguejo para algum restaurante. A gente tenta explicar que ele pode ganhar o dia, mas isso pode comprometer o futuro, vai faltar peixe, vai faltar caranguejo. A gente até convence o morador daqui, duro é convencer quem vai servir o caranguejo. Se aumentar muito o número de gente disposta a consumir peixe pescado de jeito errado, no tempo errado, isso aqui não dura.”

 

Kitesurfe e peixe-boi

Cajueiro da Praia é um dos quatro municípios do Piauí com acesso ao Oceano Atlântico. Junto à Ilha Grande, Parnaíba e à vizinha Luiz Correia, da qual se emancipou há pouco mais de uma década, ocupa parte dos 66 quilômetros de praias do estado. Parnaíba, com quase 150 mil habitantes, é o ponto de apoio mais conhecido e estruturado, com hotéis e agências de turismo para quem procura a região como parte dos caminhos entre Barrinhas (sede dos Lençóis Maranhenses) e Jericoacoara, na costa oeste cearense. Há também passeios que partem dali para os sítios arqueológicos dos parques da Serra da Capivara e de Sete Cidades.

 

Luiz Correia, colada a Parnaíba, tem menos de 30 mil habitantes, mas é também referência para quem faz os roteiros do complexo de dunas, lagoas,­ ilhas e igarapés do delta do Rio Parnaíba, o único do continente americano em mar aberto. A região fica a 180 quilômetros tanto de quem vem da direção de Barreirinhas como de Jericoacoara. E a 340 de Teresina.
A sede administrativa de Cajueiro está a uma hora de Luiz Correia. Além da xodó Barra Grande, a cidadezinha de menos de 7 mil habitantes tem outras belas praias, algumas não “feitas” para gente andar. Sua posição geográfica e a pouca frequência no período que vai de julho até o início do ano atraem muitos praticantes do kitesurfe. O lugarejo também abriga uma das cinco bases do Projeto Peixe-boi Marinho no país.

 

Segundo a cientista social Patrícia dos Passos Claros, a população desse animal em águas brasileiras está na lista das espécies em extinção. Numa estimativa – que ela admite estar desatualizada, “mas é a que temos” – não passa de 500 o total de peixes-bois em todo o Brasil, e apenas 35 desses mamíferos estariam morando nos arredores de Cajueiro.
“O fato de não haver caça intencional na região ajuda. Esse ponto na divisa entre o Piauí e o Ceará tem um litoral razoavelmente preservado. Temos uns 11 mil hectares de manguezal que formam um estuário importante, bastante favorável para a reprodução desse mamífero”, diz Patrícia, que mora em Parnaíba, trabalha como analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMbio, do Ministério do Meio Ambiente) e há três anos atua na base do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Aquáticos, em Cajueiro.

 

Visitantes que quiserem passear pela área monitorada e tentar a sorte de avistar o animal contam com o aval dos técnicos da base. As águas do estuário não sabem o que é barulho de motor. Tudo ali é vasculhado em pequenas embarcações a remo. Para a tentativa de observação é preciso contar com uma combinação de fatores – maré, lua, época do ano, ser dia de ronda dos monitores, além de sorte – e agendar com a base pelo telefone (86) 8107-4827, com o coordenador Heleno, ou (86) 8105-0258, com João.
Segundo Patrícia, a ideia de estimular as visitas, além de ajudar a disseminar a importância da preservação dessa e de outras espécies para o bioma, pode estimular as autoridades a aprimorar o atendimento ao turismo sustentável. “Nosso objetivo é conseguir instalar em breve um museu e um auditório, proporcionar às pessoas a observação da fauna e do cenário, e que tomem gosto pelo que observam.”