Maquete do bicentenário

País discute com a sociedade metas para os 200 anos da Independência. Plano busca antídoto para políticas neoliberais e quer garantir ações efetiva

Plano para 2022 inclui universalização do atendimento escolar (Foto: Wilson Dias/Abr)

Empossado em outubro de 2009, o ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos, embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, foi chamado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e recebeu uma encomenda: elaborar um plano para o bicentenário da Independência do Brasil. “Ele pediu que eu colocasse em um documento aquilo que a sociedade desejaria ser em 2022”, resume o ministro. Começava um processo de consultas que resultaria no Plano Brasil 2022. O documento, apresentado oficialmente no final de junho, estabelece metas e ações para os próximos 12 anos nas áreas sociais, de economia e infraestrutura – fruto de um processo de consulta a 20 mil entidades civis, que contribuíram com críticas e sugestões.

As discussões se deram em grupos de trabalho que contaram com a participação de dirigentes de diversos ministérios, técnicos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e representantes de setores da sociedade, como trabalhadores, empresários, artistas, políticos e intelectuais. As ações envolverão 36 setores de governo em áreas definidas como Estado, economia, infraestrutura e social.

A partir de uma perspectiva totalmente antineoliberal, o Plano Brasil 2022 já ganhou lugar no rol das iniciativas do atual­ governo que provocam arrepios em seus críticos. Em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, o ex-secretário de governo tucano José Goldemberg critica Pinheiro Guimarães por expor “visões ideo­lógicas” e afirma que as metas propostas são “arbitrárias”.

Algumas metas parecem impraticáveis para setores da política brasileira que pregam a diminuição dos gastos públicos e a redução da presença do Estado na economia. Entre os objetivos estão listados pontos como “reduzir à metade a concentração fundiária”, “erradicar o analfabetismo”, “universalizar o atendimento escolar de 4 a 17 anos”, “reduzir pela metade o número de homicídios” ou “reduzir o desmatamento ilegal a zero”.

Tendências

O plano parte de perspectivas do cenário global nos próximos anos, no qual o mundo conviverá com a aceleração da transformação tecnológica, mas também com o agravamento da situação ambiental e energética, das desigualdades sociais e da pobreza; as migrações, o racismo e a xenofobia; a concentração de poder pelos países ricos e a insistência destes em ditar parâmetros para as economias domésticas dos subdesenvolvidos. Segundo Pinheiro Guimarães, o fosso tecnológico que separa países ricos e pobres tende a aumentar nos próximos anos e será fator de crise. Ele cita a informática e nichos como a engenharia genética e a nanotecnologia como exemplos de setores particularmente sensíveis nesse “apartheid tecnológico”.

O ministro chama a atenção também para os aspectos militares da crise provocada por essa desigualdade: “O progresso tecnológico afetará desde a doutrina ao equipamento e aumentará cada vez mais a eficiência letal dos armamentos, a sua miniaturização, o seu controle remoto e a sua colocação no espaço. Isso terá como consequência a ampliação do hiato de poder, especialmente entre os Estados Unidos e os Estados subdesenvolvidos da periferia”, diz.

No campo energético, ele acredita que ocorrerá uma transformação da atual matriz energética baseada em carbono para outra, baseada em fontes de energia renováveis: “Tudo indica que essa transformação será lenta e conflituosa devido aos poderosos e numerosos grupos de interesse econômico dentro dos países”.

O fortalecimento da relação do Brasil com outros países também é meta prioritária para os próximos anos: “A ação brasileira em um cenário mundial político e econômico tão complexo e difícil somente poderá ter êxito se articulada politicamente com a ação de outros Estados da periferia, sejam eles grandes, como a Argentina, a África do Sul, a China e a Índia, sejam de menor dimensão. Mas, certamente, essa articulação deve começar pelos países da América Latina e, nela, pelos nossos vizinhos da América do Sul”.

O físico José Goldemberg faz críticas ao plano por lançar “toda a culpa dos atuais­ problemas em opções neoliberais, o que é um exagero”. Para ele, o plano parece não compreender a realidade atual, particularmente quando atribui o agravamento da situação ambiental-energética às teorias liberais. O ministro Pinheiro Guimarães expressa essa tese da seguinte forma: “A expansão das atividades industriais com base nas teorias liberais relativas à melhor organização da produção e do consumo, a partir do dogma do livre jogo das forças de mercado, levou a um desperdício enorme de recursos naturais e de vidas humanas”.

ALGUMAS METAS DO PLANO BRASIL 2022 (www.sae.gov.br/brasil2022)

  •  Reduzir à metade a concentração fundiária
  • Regularizar a propriedade de terra
  • Dobrar a produção de alimentos
  • Dobrar a renda da agricultura familiar
  • Concluir o zoneamento econômico-ecológico de todo o país
  • Garantir a segurança alimentar a todos os brasileiros
  • Reduzir pela metade o consumo de drogas
  • Alcançar 50% de participação das fontes renováveis na matriz energética
  • Elevar para 60% o nível de utilização do potencial hidráulico
  • Dobrar o consumo per capita de energia
  • Instalar quatro novas usinas nucleares
  • Erradicar o analfabetismo
  • Universalizar o atendimento escolar de 4 a 17 anos
  • Atingir as metas de qualidade na educação dos países desenvolvidos
  • Interiorizar a rede federal de educação para todas as microrregiões
  • Atingir a marca de 10 milhões de universitários
  • Ter uma praça de esportes em cada município
  • Incluir o Brasil entre as dez maiores potências olímpicas
  • Garantir o monitoramento integral das fronteiras terrestres e das águas jurisdicionais
  • Lançar o primeiro veículo lançador de satélites (VLS) construído no Brasil
  • Assegurar tratamento digno a todos os presidiários
  • Reduzir à metade os detidos sem sentença
  • Reduzir pela metade as mortes no trânsito
  • Reduzir pela metade o número de homicídios
  • Universalizar a Previdência Social
  • Ter agências da Previdência em todos os municípios ou consórcios de municípios
  • Demarcar todas as terras indígenas e dar sustentação socioeconômica às áreas indígenas demarcadas
  • Assegurar a efetividade da execução da dívida ativa da União
  • Implantar e expandir os mecanismos de conciliação e transação com o Estado
  • Assegurar total transparência das despesas públicas nos três níveis e nos três poderes
  • Reduzir o desmatamento ilegal a zero
  • Reduzir em 50% a emissão de gases de efeito estufa
  • Tratar de forma ambientalmente adequada 100% dos resíduos sólidos
  • Aumentar a reciclagem dos materiais que têm valor econômico no pós-consumo para 30%

Nova economia

Para o vice-presidente-executivo do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, o empresário Paulo Itacarambi, tão importante quanto o objetivo é o planejamento, ou seja, como atingir as metas. “A agenda tem de incluir uma nova economia”, afirma. O próprio Ethos discutiu recentemente a sua visão para os próximos dez anos. O instituto defende “uma economia ao mesmo tempo inclusiva, verde e responsável”.

Ouvido para o plano como representante do Conselho de Transparência Pública e Combate à Corrupção, Itacarambi observa uma “macrotendência mundial” de crescimento da chamada economia verde, incluindo baixo nível de emissões de carbono e melhor reaproveitamento de resíduos como matérias-primas. “Os processos industriais vão se relacionar de forma muito mais amigável com as questões ambientais.” Isso passa também por uma melhor distribuição da riqueza, acrescenta o executivo. “O processo concentrador está na forma como a riqueza é produzida. Cada vez mais a participação do trabalho é menor”, afirma. Assim, essa nova economia terá de garantir “menor desigualdade de acesso à renda, ao trabalho, aos direitos, à Justiça, aos serviços básicos”.

É preciso ainda, aponta, que as ações do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) incorporem essa perspectiva de longo prazo. “Estamos pensando nas obras de infraestrutura com esse critério? O pré-sal também está sendo pensado dessa maneira? O importante é que o plano tenha continuidade, mesmo que haja mudança de partido que está na condução do governo.”

Eficiência

Para o Greenpeace, o plano – que fala em crescimento anual de 7% nos próximos 12 anos e, para isso, dobrar o consumo de energia per capita – peca por não estabelecer metas de aumento da eficiência dos sistemas de geração, transmissão e distribuição de energia, além do consumo. “Dobrar o consumo per capita é uma necessidade relativa. Podemos ser mais eficientes nos processos produtivos e ter crescimento da economia utilizando cada vez menos energia”, diz Ricardo Baitelo, coordenador da campanha de energias renováveis da ONG.

Segundo ele, o plano para 2022 mantém a política de construção de grandes hidrelétricas em regiões remotas e a dependência de linhas de transmissão de “milhares de quilômetros” para abastecer as principais atividades econômicas e as maiores cidades do país. “Fala-se muito pouco em relação à eficiência das linhas de transmissão”, critica.

Para Baitelo, o plano de expansão da capacidade instalada de geração elétrica será feito na Amazônia – “fatalmente” com impacto nas populações locais. Como acontecerá, cita, na futura usina de Belo Monte, no Rio Xingu (PA). O coordenador do Greenpeace teme que os impactos sociais e ambientais provoquem conflitos e demandas na Justiça e lamenta que o plano não contemple a potencialização das hidrelétricas já instaladas, com a substituição de turbinas antigas por equipamentos novos e mais eficientes.

Ideias não faltam. O professor Ladislaw Dowbor, do Departamento de Pós-Gradua­ção da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, identifica uma inovação já no fato de ter havido uma consulta pública técnica. “Não me lembro de ter visto uma consulta assim antes (no Brasil).­ Vi vários tipos específicos, mas não amplos assim, nem com consulta à sociedade”, diz Dow­bor, uma das personalidades consultadas. Para o presidente do Núcleo de Estudos do Futuro, da PUC, o planejamento de Estado não pode mais se restringir a um ciclo de governo de quatro anos. “Quando se elabora um documento que apresenta uma visão estratégica para o país, você estimula a reflexão da sociedade”, diz. “Hoje, os representantes do povo no Brasil são eleitos basicamente pelas grandes empresas, por meio do financiamento de campanhas. Temos bancada dos banqueiros, dos ruralistas, que defendem seus interesses… Só não tem bancada do cidadão. Isso não deixa que aflorem interesses mais amplos. Enquanto isso não mudar, é difícil.”

O professor defende a conduta adotada pelo atual governo, que tem direcionado esforços para uma “significativa” redução da desigualdade social. “Então há esperança.”

 

Ensaio geral

Os principais pontos do Plano Brasil 2022 foram apresentados pelo ministro Samuel Pinheiro Guimarães a estudantes da Universidade de Brasília (UnB) na primeira semana de julho. O ministro disse que a afirmação política e econômica do país deve passar pela superação de antigos dogmas: “Os parâmetros que surgiram como resultado das negociações da Rodada Uruguai (foro de negociações desenvolvido de 1986 a 1994) e se concretizaram no conjunto de acordos que vieram a criar a OMC (Organização Mundial do Comércio) limitaram de forma significativa a capacidade dos países subdesenvolvidos de organizar e executar políticas de desenvolvimento necessárias à superação de suas fragilidades econômicas e sociais”.

No ensaio que abre o Plano Brasil 2022, Pinheiro Guimarães afirma que a aproximação do bicentenário da Independência acontece ao mesmo tempo em que “se inicia a etapa soberana e altiva do Brasil multirracial, multicultural e multifacetado”. Afirma também que a data simbólica é uma oportunidade de “reduzir de forma radical as desigualdades sociais que nos dividem e nos atrasam, de eliminar as vulnerabilidades externas que nos ameaçam em nosso curso e de realizar nosso gigantesco potencial humano e material”.

O ministro admite não nutrir ilusões de que o sistema internacional venha a sofrer mudanças significativas nos próximos 12 anos, mas acredita que o Brasil, “devido às suas dimensões territoriais e geográficas e aos seus extraordinários recursos naturais”, tem potencial para marchar por conta própria: “A extensão do papel do Estado é a grande questão que surgiu com a crise de 2008, em que ainda está o mundo imerso, resultado da aplicação extremada na ideologia neoliberal, crise que clama por uma solução”.