Língua e ginga

As gírias da quebrada são incorporadas ao idioma dos branquelas

Victoria, de 13 anos, garante que não usa gírias nos trabalhos escolares (Foto: Mauricio Morais)

“Ando gingando cuns braços pra trás/ Só falo na gíria e pros bico é demais/ Sô forgado, afronto os gambé/ Sô polêmico/ Na favela o meu diploma acadêmico/ De tênis All Star, de cabelo black/ Meu beck, a caixa e o bumbo e o clap/ Cresci ali envolvidão qua função/ Na sola do pé bate o meu coração.”

Se você tem mais de 30 anos, provavelmente ficou sem entender uma ou outra palavra da música do grupo paulista de rap Racionais MC´s. Se tem menos de 20, não só entendeu perfeitamente como talvez use essas e outras gírias diariamente sem parar para pensar no seu real significado ou de onde vieram. Chama o amigo de “mano”, “Jão”, começa as frases com “tipo”, termina com “tá ligado?” e se alguma coisa dá certo comemora com um “é nóis”. As gírias que nasceram na periferia desceram o morro – ou pegaram um busão para o centro –, e fazem parte do vocabulário dos adolescentes de todos os bairros, de todas as tribos e classes sociais.

Lucas Cardoso de Moraes tem 16 anos e estuda em um colégio particular de Campo Limpo Paulista (SP), onde mora. Ele admite usar gírias o tempo todo, na escola, em casa e com os amigos, apesar de a mãe, Solange,­ ­não gostar: “Já pensou se ele resolve falar desse jeito em uma entrevista de emprego? Não sei onde ele aprende essas coisas”. E de a professora descontar pontos quando ele escreve “tipo assim” nas provas. “Quando eu era muleke, eu morava com a minha vó e eu era certinho e talz, mas andava com uns meninos que já eram da rua e com eles aprendi a falar várias gírias”, escreve, por e-mail, porque falar ao celular ou pessoalmente para essa molecada é quase impossível;­ mas a entrevista via internet demora alguns segundos. Lucas diz que não sabe de onde vieram as palavras que mais usa – mano, tipo assim, pode crê, firmeza, é nóis, pode pá –, mas imagina que nasceram na periferia mesmo. “Todos os jovens falam gíria hoje, né? Eu e meus amigos falamos MUITO”, assim mesmo, em caixa alta.

Para o MC (mestre de cerimônias) e rapper­ paulista Kamau, usar termos sem conhecer o significado é comum na sociedade: “É uma prática do ser humano para tentar se destacar e mostrar o que não é. As pessoas que não são da periferia usam a linguagem da periferia, e as que são, falam de um jeito mais rebuscado de forma errada para mostrar que sabem alguma coisa diferente”. Ele não acha ruim essa escapada das gírias para as zonas mais nobres, mas diz que às vezes elas são usadas como forma de preconceito: “Nosso jeito de falar hoje entra em lugares em que nós mesmos não somos benvindos. E pelo tom a gente percebe que é pejorativo, se dizem ‘uns manos ali’ ou ‘aqueles manos do rap’, ironizando. Até escrito dá para sentir o tom”.

O escritor carioca Paulo Lins também acredita que isso acontece desde sempre: “As gírias sempre nasceram na favela e se espalharam. Quando eu estudava a linguagem da rua para escrever Cidade de Deus era assim. Agora estou pesquisando a história do samba nos anos 1930 no Brasil, e já tinha isso. Oswald de Andrade já dizia que a língua é viva e deve ser usada de forma coloquial. É dele aquele poema: “Para dizerem milho dizem mio/ Para melhor dizem mió/ Para pior pió/ Para telha dizem teia/ Para telhado dizem teiado / E vão fazendo telhados”.

Na mesma Rio de Janeiro de Paulo Lins nasceu Israel Marins Morettoni. Aos 20 anos de idade e cursando o primeiro ano de Pedagogia em uma faculdade federal, ele sabe muito bem usar a norma culta, mas concorda com o poeta Oswald sobre a importância da língua viva, aquela que é aprendida nas experiências cotidianas: “Sempre convivi com vários tipos de pessoas,­ surfando, jogando bola, bolinha de gude. Então aprendi várias gírias que uso hoje, no contato com os meus amigos. Lek (abreviação de muleke), maior onda, irado, punk, show de bola, tamo junto, pangaré, GN (garoto novo), haule, e por aí vai”.

O professor Jorge Luiz do Nascimento, do programa de pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e pesquisador da cultura hip-hop, acredita que a mídia ajuda a disseminar para o resto do país o modo de falar da periferia, principalmente do Rio de Janeiro e de São Paulo, por meio de novelas, filmes e da música: “Há a tendência de que os dialetos gírios desses lugares atinjam todo o Brasil e sejam utilizados até em Portugal, onde essas expressões brasileiras se incorporaram ao falar local por causa das novelas brasileiras lá exibidas”.

Renegado, rapper de Belo Horizonte que tem levado seu “dialeto gírio” para o resto do mundo (ele deu a entrevista antes de embarcar para Paris),­ concorda com o professor. Para ele, a cada disco dos Racionais ou filme nacional ambientado na favela, como Cidade de Deus e Tropa de Elite, novas levas de gírias incrementam o vocabulário da moçada: “Aqui em BH a gente até tem expressões próprias, como ‘fragar’ (olhar), mas a maioria vem mesmo do Rio e de São Paulo”. Ele acha bacana essa mistura de culturas: “Se estamos nos comunicando, estamos cumprindo a nossa função. Se a molecada de fora da periferia ouve e entende a nossa música, nossa mensagem, melhor ainda!”
Victoria Saloti Zeni, de São Paulo, gosta mesmo é de um tal happy rock, ou rock feliz: reação da garotada “pós-emo” que mudou o guarda-roupa preto e as canções tristes pelas cores e versos animados. Aos 13 anos e cursando a 8ª série em uma escola particular, ela jura que nunca escreveu gírias em provas ou trabalhos: “Já pensou? Como assim escrever gíria em prova, véio?” Mas admite que usa muitas, como “tipo”, “mano”, “véio”, “pá” nos bate-papos e redes de relacionamento da internet ou quando encontra as amigas. Rodrigo, o pai, fica em cima: “Usar gírias com os amigos tudo bem, é coisa de adolescente. O que sempre digo para ela é que precisa saber falar e escrever corretamente. E precisa ter um vocabulário rico para se preparar para o futuro”.

Gíria cabeça

Para o professor cearense João Bosco Gurgel, gíria é coisa séria. Ao concluir curso de Antropologia e Sociologia em 1968, resolveu fazer mestrado em Antropologia da Linguagem e entrou de cabeça nesse universo: “Comecei uma pesquisa da linguagem popular na imprensa do Rio de Janeiro e cheguei rapidamente à gíria, obser­vando que não era linguagem só de malandros, já que era também usada pelo jornal popular, pelo rádio e pela televisão”. Ele conta que após anos de pesquisas no Rio e em Brasília, juntou material suficiente para a primeira edição do Dicionário de Gírias, lançado em 1985, com 6 mil verbetes. Hoje, o dicionário está na oitava edição e possui 33.500 mil termos na versão impressa, além de uma página na internet com o Jornal da Gíria, que traz novidades, curiosidades e regras­ da língua.­ Até o final de julho passado, o site contabilizava mais de 496.460 acessos de estudiosos, tradutores, especialistas e pais tentando entender o que os filhos falam.

“No Brasil, o primeiro dicionário de gíria é de 1912. Outros importantes saíram nas décadas de 1950 e 1960. E no Rio de Janeiro foi publicado o primeiro livro em girês: Memórias de um Sargento de Milícias”, diz Gurgel. Para o pesquisador, as gírias nascem em todos os locais onde existam pessoas que desconhecem, por alguma razão, a língua padrão e não têm vocabulário para se expressar com correção. “A gíria é a segunda língua do brasileiro, não chega a ser um dialeto, porque conserva a escala fonemática e morfológica da língua portuguesa, surgindo mais como uma sub-língua, com a mesma estrutura gramatical. Ela tem uma fase romântica, aquela da malandragem, e uma fase virtual ,que floresceu com a ampliação dos grupos dos excluídos, dos que não estudam e dos que estudam e não aprendem, independentemente de classe social.”

Sobre a influência midiática nesse processo de disseminação, o professor vê não só como importante, mas criadora de uma nova língua: “A influência do cinema é residual. Do rádio e da televisão é mais forte. Hoje, com os novos fluxos ou vertentes dos rappers e da internet, importantes transformações e mudanças estão surgindo. Não me detive sobre elas, mas admito que serão devastadoras no nosso processo linguístico”.

Língua engomadinha

Outro dicionário de gírias muito rico e em atualização constante é o do site da comunidade do Capão Redondo, na periferia de São Paulo. Clicando em um botão chamado de dialeto local, é possível encontrar termos em ordem alfabética e até cadastrar novas gírias e explicações. Mas vale a advertência: se você não é um iniciado na linguagem das ruas, nem tente. A explicação de uma gíria é dada com outras ainda mais complicadas. Exemplo: “FIM DE CARREIRA, mano e ou mina zuados q usa mt droga etc. poh mano droga d+ é fin de carreira”.

“A língua portuguesa ainda é muito engomadinha, então é bom subverter, misturar”, manda Ferréz, escritor, rapper e dono da marca 1 da Sul. Ele não credita a propagação das gírias à mídia. Para ele, a linguagem das ruas se espalha no boca-a-boca: “Todo mundo circula em todos os lugares, aí você tromba um motoboy que diz ‘e aí, Jão?’, tromba um motorista que fala ‘é nóis’, e isso vai passando. Por mais que o cinema e a música tentem, não dá para pasteurizar as gírias, porque tudo muda rápido demais. Eu saio na rua em uma semana e na outra as gírias já mudaram. A língua não é estática”.

Ferréz lembra algumas gírias que vieram do Nordeste e do Sul, que pegaram no resto do país: “A coisa de chamar o outro de macho, ‘e aí, macho?’, vem do Nordeste por exemplo. Outra é o ‘qual que pá?’, que vem do Sul. A periferia é rica, grande mistura de culturas. Pessoas vêm e vão, não ficam trancadas em apês como a classe média. Ficam mais na rua, deixam o portão aberto, nisso são bem mais ricas”, provoca.

Como dizem os Racionais MC´s, “Não adianta querer/ tem que ser/ tem que pá/ O mundo é diferente da ponte pra cá/ Não adianta querer ser/ tem que ter pra trocar/ O mundo é diferente da ponte pra cá”. Da ponte pra lá, só resta copiar e desengomar a língua. Mas usar a linguagem dos manos e ser preconceituoso não está com nada. É paradoxal. Essa, você que tem mais de 25, entendeu. E se você não sabe o que é paradoxo, “fikadika”: conhecer o português em sua norma culta também é importante. Assim você não vacila nem paga de otário com a crew, né, Jão?