O rock é uma criança

O poder de encantar as pessoas desde pequenininhas garante ao ritmo a sua longevidade. E bons negócios

A banda Kiss é a preferida de Victória e Pietro, filhos de João Gordo e Viviana. (Foto: Mauricio Morais)

Em 1951, o discotecário Alan Freed, de Cleveland, nos Estados Unidos, utilizou pela primeira vez a expressão “rock and roll”. No mesmo ano, Jackie Brenston e Delta Cats lançaram a primeira canção do estilo, Rocket 88. O ritmo surgiu sob medida para uma juventude ávida por dar alguma vazão a sua natureza rebelde. E hoje qualquer sessentão como o rock sabe que a longevidade do ritmo vem do fato de as pessoas começarem a gostar dele desde criancinhas.

Para elas, o sábio mercado aprendeu a destinar roupas, videogames, CDs, livros, séries de TV. Crianças e adolescentes também se divertem em festas temáticas, aprendem a tocar instrumentos e montam bandas reverenciando ídolos do passado.

“De maneira geral, o rock oferece uma música fácil de cantarolar, irresistível de sacudir e ótima de socializar. A garotada já nasce numa cultura em que o gênero está em toda parte, na propaganda da TV, no som ambiente, na internet e até no disco”, analisa o crítico musical Arthur Dapieve. “Ou seja, essa é a trilha de suas vidas, mais que qualquer modismo pop efêmero das últimas décadas. Passa de pai para filho e, às vezes, vice-versa.”

Há quatro anos, Gabriela Ruzzi, de 15 anos, e a tia Mariana Ruzzi, de 16, montaram a banda Nota Promissória, surgida quando se juntaram a uma amiga e assumiram, respectivamente, bateria, teclado e vocais para tocar em festas na cidade de São Carlos (SP). Com o reforço da guitarrista Nathalia Fernanda Dias, de 12 anos, e a contrabaixista Gabriela Rosalini, de 14, o grupo está prestes a lançar o segundo CD de canções próprias, já participou de vários festivais, abriu shows para artistas como CPM 22 e toca sucessos de Kiss, Guns N’Roses e Iron Maiden. “Ainda sofremos preconceito por sermos uma banda de crianças e de meninas. Desde o início, quando nos viam, diziam que iríamos tocar Xuxa e Balão Mágico. Aí começamos os shows anunciando tocar esses artistas infantis e tocamos Guns”, revela Gabriela Ruzzi.

A paixão de Gabriela e Mariana por rock começou muito cedo, do convívio com o irmão da primeira e pai da segunda, Paulo. “Aos poucos, começamos a brincar, ela tocando violão e eu batendo nas panelas. Gostamos mais de rock antigo e meu pai sempre dá dicas do que podemos incluir no repertório”, conta Mariana. Elas conseguiram fazer até o empresário José Carlos Ruzzi, de 64 anos, que passou boa parte da vida escutando modas de viola, virar fã de rock. “As meninas são o orgulho da família e não perdemos um show delas, até porque só podem tocar se tiver um responsável direto presente”, frisa o pai.

Brinquedinho

 

Evelyn Rocha Martins, de 14 anos, começou a ouvir rock com o irmão dez anos mais velho. Estuda guitarra e sonha em montar uma banda só de meninas em São Sebastião do Paraíso (MG). Ela espera a oportunidade de assistir a um show da banda Metallica, do guitarrista e ídolo James Hetfield. “Quando eu tinha 12 anos, comecei a comprar pôsteres e camisetas de artistas de rock e a conhecer outras pessoas que também gostavam”, conta.

O carioca Luiz Otávio Faraco Oliveto, de 15 anos, sempre gostou de shows e costumava ir à extinta Banca de Blues, onde se apresentavam vários artistas iniciantes do Rio de Janeiro. “Desde bem pequeno ouvia com meu pai bandas como Led Zeppelin, Deep Purple, Pink Floyd e Rolling Stones. Depois, sozinho, fui procurar mais esse tipo de música e comecei a frequentar os shows que eram de graça, onde podia tocar na rua mesmo e ficar amigo das bandas”, conta.
Luiz Otávio também toca guitarra e gosta de jogar Guitar Hero, um videogame que tem comando na forma do instrumento, com o qual o jogador simula a reprodução de clássicos de Jimi Hendrix, Van Halen, Joe Satriani, Slash, Guns N’Roses, Gene Simmons, Kiss. Há também os jogos Rock Band e Band Hero, que simulam bandas completas, com guitarra, baixo, bateria e vocais.

“Estou me programando para até o final de ano dar para meus filhos Pedro Augusto, de 4 anos, e João Vitor, de 6, o Guitar Hero. Se tiverem o dom e a vontade de tocar, iremos atrás”, conta o gerente de vendas Adriano Rodrigues de Oliveira. Desde que os filhos nasceram, Adriano, de 38 anos, costuma escutar com eles bandas como Aerosmith, Twisted Sister e U2, e jogar o videogame Rock N’Roll Racing, da Super Nintendo, em que cada fase vencida é premiada com o som de um clássico do rock.
Além dos videogames, há livros que se propõem a iniciar o público infanto-juvenil. O quadrinista francês Hervé Bourhis criou O Pequeno Livro do Rock, que retrata a história do ritmo em quadrinhos para todas as faixas etárias e acaba de ser traduzido para o português. A editora Nova Alexandria possui uma coleção a respeito da infância de grandes ídolos, inclusive do rock. Em O Jovem Elvis Presley, o jornalista Ayrton Mugnaini Jr. retrata a infância pobre do rei do rock, no período seguinte à Grande Depressão. Jordi Sierra i Fabra relembra, em O Jovem Lennon, o início de vida sofrido do beatle na cidade industrial inglesa de Liverpool.

O rock também está presente nos seriados voltados ao público infanto-juvenil. No início do ano, estreou na emissora Disney XD, nos Estados Unidos e no Brasil, o sitcom musical I’m in the Band, estrelado pelo ator Logan Miller, que interpreta o adolescente Tripp Cambell, o qual se une à banda favorita, Iron Weasel. Para o lançamento, a Disney reeditou, com crianças, várias capas de álbuns clássicos como Abbey Road, dos Beatles, e Queen II, da banda de Freddie Mercury. A estratégia em torno do rock não é nova. Entre 1966 e 1968, a rede norte-americana NBC criou um seriado estrelado pela banda Monkees, uma tentativa de rivalizar com os ingleses dos Beatles.

Tal filho

 

O sonho de tocar numa banda de rock ocorreu bastante prematuramente na vida de Drake Nova, que aos 2 anos, segurando uma guitarra de madeira, subia aos palcos em shows do Camisa de Vênus, grupo do pai Marcelo Nova. Aos 6 anos, ganhou uma guitarra de verdade e passou a fazer no palco o solo da música Simca Chambord. Hoje, com 12, Drake tem uma banda que faz cover de famosas, como AC/DC e Metallica. “Numa casa como a minha, onde em 100% do dia toca rock, não tem como não gostar. Quando era bebê, eu só conseguia dormir ao som de Stray Cats (banda norte-americana de rockabilly). Com meu pai, lembro de ter ido ao show do Bob Dylan, em Porto Alegre, e de frequentar a Galeria do Rock, no Centro de São Paulo”, conta Drake.

De olho em precoces como ele, a marca de moda carioca Q-Vizu possui coleções temáticas voltadas a crianças, de recém-nascidos até 10 anos. “Passar dos limites e não se permitir ser muito politicamente correto é uma atitude bem roqueira, transgressora e justamente o que buscamos, assim como fugir do que o mercado oferece”, diz Renata Grimberg, jornalista e sócia da grife. 

Com lojas em São Paulo, Rio de Janeiro e Cuiabá (MT), a marca Mini Humanos oferece desde travesseiros em forma de guitarra até babadores, batas e bodies de temática roqueira. Destaques para coleções como Grunge – com camisetas inspiradas nas bandas Nirvana e Pearl Jam, e com bermudões e camisas xadrez – e Woodstock, o famoso festival de 1969 que marcou o ápice do movimento hippie. “São temas com que o adulto se identifica e quer ‘ensinar’ para o filho. É uma brincadeira que promove aproximação. O pai pode não ligar muito se o filho está vestindo ursinho, mas adora vê-lo com a camiseta da banda preferida”, aposta a empresária Ana Carolina Pinheiro.

A rede de restaurantes Hard Rock Café, por sua vez, oferece festa temática para o público infanto-juvenil, nas filiais do Rio de Janeiro e de Nova Lima (MG). “Realizamos dez festas por mês”, diz Rosa Dornelas, da filial carioca. O aniversário de 12 anos de Bianca Lara, em 8 de junho, foi no local que gosta de frequentar com os pais.
“Ela já não está mais na fase de curtir festas em bufê com brinquedos. Descobrimos a festa temática, que é realizada numa sala reservada onde são colocados balões coloridos, um deles preso a uma guitarra, com o nome da Bianca. Também tem DJ tocando músicas escolhidas pela aniversariante. Foi muito bom e as crianças adoraram”, comemora a mãe, Maria Soraya Lara.

Alguns pais preferem “amaciar” os ouvidos dos pequenos antes de radicalizar. Maria Cecília Gouvêa Galhardo, de 41 anos, mãe de Pedro Galhardo Fraguas, de 3, é cliente da grife Mini Humanos. Pedro começou ouvindo CDs de clássicos de bandas e cantores consagrados – como Beatles, Bob Marley, Queen, AC/DC, The Cure, U2, Green Day, Pixies e Coldplay – em versões de ninar. E adora Shrek e Bob Esponja, desenhos com trilhas bastante roqueiras. “Comecei a gostar de rock na adolescência e meu marido, Fernando, que é mais roqueiro do que eu, adora rock pesado. Já acorda cantando e não só coloca o Pedro para ouvir, como dança com ele e chacoalha a cabeça. Também sempre procurei roupas transadas para ele, não gosto de mesmice e acho muito charmosa criança vestida de preto”, explica.

Beatles for Babies foi o primeiro CD que Victoria, de 6 anos, ganhou dos pais, o apresentador de TV João Gordo, vocalista da banda Ratos de Porão, e a jornalista Viviana Torrico Benedan. Antes, assim como o irmão Pietro, de 4 anos, Victoria já ouvia música na barriga da mãe. “O fato de serem filhos de pais roqueiros interfere e muito. Até determinada idade, as crianças são um claro reflexo do que acontece em sua casa. Afinal, meu marido é vocalista do RDP há 27 anos, trabalha com isso e em casa se respira música. E o figurino do rock também está muito presente nas crianças”, observa Viviana.

A jornalista lembra de faxinas de sábado em casa ao som de Vídeo Macumba, música dos Ratos de Porão. Agora leva os filhos em shows em horários possíveis para a idade e em locais pequenos e amigáveis. E organiza festas de aniversário com tema do Kiss, com direito a banda cover, chuva de papel picado e lembrancinhas como bottons e adesivos.

Não é à toa que o grupo formado em Nova York em 1973 é um dos preferidos das crianças. Afinal, além das músicas, os integrantes se apresentam com o rosto pintado de branco, detalhes em preto e batom vermelho nos lábios, cospem fogo e sangue em shows que incluem guitarras esfumaçantes e muitas pirotecnias. O que para adultos parece um espetáculo radical, ao olhar da criança pode parecer um circo.