comportamento

Você não entende patavina?

Expressões idiomáticas são o que não falta na nossa língua. Mas alguém faz idéia de onde elas vêm?

Ilustração: Alex Lutkus

No Brasil imperial, havia um prostíbulo no Rio de Janeiro muito freqüentado por homens de alto escalão do “governo” da época. A dona dele era a tal Joana

“Não entendo ‘patavina’ do que diz aquele sujeito ‘sem eira nem beira’: fala como se estivesse ‘na casa da mãe Joana’.” Em apenas uma frase, três expressões que têm origem em Portugal e dizem, em poucas palavras, muita coisa. O mais curioso é que, apesar de serem utilizadas cotidianamente pelos brasileiros – e muitas vezes de forma errada –, poucos imaginam onde surgiram. Mas vêm de algum lugar: de outro país, de outros povos, de outra cultura. E, receptivos como somente os brasileiros o são, fomos incorporando-as a nossa língua. Há livros e mais livros sobre o assunto. Utilizá-las para se expressar não é, de forma alguma, errado. O que não está certo é usá-las fora de seu sentido, o que só provoca “uma confusão dos diabos”.

De Portugal vieram muitas delas. Por não conseguir entender o que diziam os frades italianos originários da cidade de Pádua, os patavinos, os portugueses diziam “não entender patavinas”. O que hoje é o equivalente ao objetivo “não estou entendendo nada”. Ao chamar alguém de sem “eira nem beira” não estamos sugerindo nenhum elogio. Ao contrário. Na época do Brasil colonial, os telhados determinavam o status econômico e, portanto, social do proprietário. Possuir eira e beira, aquela pequena projeção do telhado sobre a parede frontal, era um sinal de riqueza. As casas que não as possuíam pertenciam a pessoas menos abastadas. E a famosa “casa da mãe Joana”, expressão que demonstra que ninguém por ali manda no local, ou local onde se faz o que se bem entende? Essa é fácil de imaginar: no Brasil imperial, havia um prostíbulo no Rio de Janeiro muito freqüentado por homens de alto escalão do “governo” da época. A dona dele era a tal Joana.

Um dos livros que explicam a origem de expressões como essas tem até o sugestivo título de A Casa da Mãe Joana, de Reinaldo Pimenta. Já adotar o nome para um bar, como acontece na Lapa carioca, ou um restaurante familiar, como em Santo André, no ABC paulista, não parece uma escolha correta. A menos que… Bem, não parece ser o caso.

Há muitas outras expressões que herdamos dos portugueses. “Favas contadas”, uma vez que antigamente as eleições eram contabilizadas com favas brancas ou pretas; “Ficar a ver navios”, que remete às pessoas que ficavam melancólicas na cidade do Porto à espera do rei dom Sebastião, que, mal sabiam elas, havia morrido em batalha; mas “agora a Inês é morta” talvez seja a mais curiosa delas. Inês de Castro, dama castelhana, foi uma personagem histórica e literária, citada em Os Lusíadas, do poeta Luís de Camões. A dita cuja teve um affair com o então príncipe dom Pedro, e com ele teve três filhos. A casa real obviamente reprovava o romance e mandou-a para a guilhotina. Mas só depois disso é que o amante, então coroado rei, decidiu dar-lhe o título de rainha. Bem naquela hora, em que Inês já era morta.

Beco sem saída

“Você inventa e adapta o que precisa dizer e não há pesquisa suficiente sobre o assunto que assegure a origem dessas expressões – às vezes, há até mais de uma explicação para cada uma delas. O homem quis andar sobre as águas e inventou o barco. Quis andar mais rápido, montou no cavalo. Mais rápido que o cavalo, surgiu o trem – mas o cavalo ainda está presente no trem, nas máquinas, no automóvel, sempre na expressão HP (horse power, força do cavalo, em inglês). Com a língua dá-se algo semelhante. ‘Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come’ nasceu da comparação com a vida na floresta – na cidade, virou ‘beco sem saída’”, afirma Deonísio da Silva, doutor em Letras pela Universidade de São Paulo e autor de diversos livros sobre o assunto, entre os mais recentes A Vida Íntima das Frases e De Onde Vêm as Palavras.

Com o intercâmbio com outras nações, o Brasil foi acrescentando ao idioma expressões de outras culturas. Algumas com origem bem mais antiga do que podemos imaginar. O famoso “calcanhar-de-aquiles”, empregado para designar aquele ponto fraco de cada um, veio da mitologia grega. Isso porque Tétis, a mãe do herói, mergulhou-o em águas mágicas para proteger seu corpo – segurando-o pelo calcanhar, única parte do corpo que ficou desprotegida. O “voto de Minerva”, que acaba definindo questões “empatadas”, também veio da Grécia Antiga, pois coube à deusa decidir o destino de Orestes, acusado do assassinato da própria mãe.

Algumas expressões têm origem que remetem a religiões, como “pensar na morte da bezerra”, que se refere à pessoa que está meditando com ares preocupados, com a “cabeça” longe. “Essa tem várias explicações, todas bíblicas. Uma conta que Absalão, filho do rei Davi, por não ter mais bezerros, sacrificou uma bezerra. Seu filho menor, que tinha grande carinho pelo animal, se opôs. Em vão. O garoto passou o resto da vida sentado do lado do altar pensando na morte da bezerra”, explica Deonísio. Quando hoje se diz “passar a mão na cabeça”, no sentido de perdoar ou deixar impune o erro de alguém, remete-se à maneira judaica com que os cristãos-novos eram abençoados, hebreus que foram forçados à conversão ao cristianismo durante a Inquisição, enquanto pronunciavam uma bênção.

Lágrimas de crocodilo

crocoAnimais também inspiram diversas expressões, todas baseadas em características do próprio bicho. Quem tem “estômago de avestruz”, que é dotado de um suco gástrico capaz de dissolver até metais, é aquele que come de tudo e não passa mal. Quem derrama “lágrimas de crocodilo” o faz porque o animal, enquanto ingere sua vítima, faz uma forte pressão contra o céu da boca, o que comprime as glândulas lacrimais. Ou seja, chora enquanto devora o companheiro de selva. Ninguém quer estar perto de quem tem bafo de onça, pois este é um animal carnívoro conhecido por se lambuzar ao começar a caça – e seu mau cheiro é sentido a distância. De visão apuradíssima, um dos mais rápidos felinos do mundo animal é lembrado para designar aqueles que enxergam incrivelmente bem com seus “olhos de lince”.

A invejável capacidade que algumas pessoas têm de reter informações é comparada à “memória de um elefante”. Ele também é lembrado quando queremos apontar algo que não serve para nada: um “elefante branco”. No antigo Sião, atual Tailândia, era costume o rei presentear alguns súditos com um bichinho dessa espécie. Ele não servia para nada: por ser considerado sagrado, não era possível sacrificá-lo nem colocá-lo para trabalhar. E, por ser presente real, não podia ser vendido nem recusado. O que fazer, então? Apenas aceitá-lo, cuidar dele e alimentá-lo até o fim dos seus dias, um gasto possível para poucos.

Claro que o brasileiro não poderia ficar de fora na hora de inventar suas próprias formas de se manifestar. As antigas farmácias embrulhavam drágeas em papel dourado, provavelmente para camuflar um pouco o aspecto do remédio amargo. Assim, eles “douravam a pílula”. Quando os imigrantes chegavam ao Brasil para trabalhar na terra, era exigido que trouxessem as próprias ferramentas. Os que não o faziam davam, de alguma forma, indicações de que não estavam assim tão dispostos ao trabalho – e chegavam “de mãos abanando”. As primeiras telhas que compunham os telhados brasileiros eram feitas de argila, modeladas nas coxas dos escravos africanos – logo, eram sempre desiguais, porque dependiam do tamanho e do porte físico de seu “fabricante”. Daí nasceu a expressão “feito nas coxas”, que hoje significa “de qualquer jeito”, e não aquilo que você estava pensando.

Expressões não têm idade e surgem a todo momento. Quem quiser que crie a sua!

Quebrando seu galho
Fonte: Deonísio da Silva

João-sem-braço
A expressão nasceu no Portugal antigo, que travou diversas guerras em seu território e, como resultado, possuía um sem-número de deficientes físicos. Muitos eram obrigados a viver da caridade pública. Alguns espertalhões vestiam uma capa para fingir não ter um ou até os dois braços, em busca de uma esmolinha fácil.

Deixar as barbas de molho
Na Antiguidade e na Idade Média, barba era sinônimo de honra, força e poder. Tê-la cortada era uma humilhação. Daí nasceu um provérbio espanhol que diz: “Quando você vir as barbas de seu vizinho pegar fogo, coloque a sua de molho”. Quer dizer, que a experiência alheia desperte sua atenção…

Pagar o pato
Vem de Portugal, de um antigo jogo em que se amarrava um pato a um poste, e o jogador, sobre um cavalo, deveria passar rapidamente e arrancar de lá o bichinho de uma só vez. Quem perdia pagava pelo animal sacrificado. É por isso que equivale, hoje, a pagar por algum erro cometido por outrem.

Chorar pelo leite derramado
A origem é, provavelmente, pecuária. Quando se faz a ordenha manual e a vaca é mansa, não se costuma amarrar suas pernas para evitar que ela dê um coice no balde. Mas, se não amarrar e a vaca estiver “tensa”, depois não adianta chorar. Assim, quem faz alguma besteira, não adianta lamentar as conseqüências.

Mala sem alça
O cavalo foi o meio de transporte mais rápido até o aparecimento do trem. No lombo ou nas carruagens, a mala requeria sempre algo que facilitasse seu transporte e acomodação: a alça. Sem ela, a mala representa um “peso” difícil de ser carregado – como o são algumas pessoas que conhecemos ao longo da vida…

Tirar água do joelho
A falta de mictórios públicos foi e ainda é um grande problema nas cidades. Quem primeiro construiu “mijadouros” foi a princesa Isabel, no Rio de Janeiro, na segunda metade do século 19. A expressão é um eufemismo masculino, pois homem urina em pé. O jato, visto de média distância, aparenta estar saindo do joelho.

Mão na roda
O carro de boi, a carroça, enfim, meios de transporte de tração animal, quando atolados, requeriam que os peões ajudassem os animais, empurrando as rodas com as mãos. Ajudar as pessoas passou a ser “dar uma mão na roda” e, a partir desta expressão, outras foram criadas com o mesmo sentido de “ajudar”, “facilitar”.

Andar na linha
De origem controversa, a expressão pode ter nascido do transporte ferroviário, mas é provável que, antes, tenha sido proferida nos quartéis, onde o jovem recruta aprendia a andar na linha, quer no sentido literal, acompanhando o pelotão, quer no sentido conotativo, obedecendo a seus superiores militares, sem se desviar.

Pedra no sapato
Curtas ou longas caminhadas tornavam-se tarefa dolorosa se algum pedregulho entrasse no sapato ou no coturno, do civil ou do militar. Passou a designar uma dificuldade imposta por terceiros, atrapalhando o percurso rumo ao objetivo.

Com a corda no pescoço
O enforcamento foi, e ainda é em alguns países, meio de aplicação da pena de morte. A metáfora nasceu de anistias ou comutações de pena chegadas à última hora, quando o condenado já estava prestes a ser executado e o algoz já lhe tinha posto a corda no pescoço – situação que é, de fato, “um sufoco”.

Chá-de-cadeira
A nobreza e a fidalguia se consideravam superiores aos demais mortais e procuravam aparecer nos compromissos com atraso para marcar o privilégio. Nas audiências, enquanto não eram recebidas, as pessoas eram acomodadas em cadeiras e os empregados lhes serviam chá para amenizar a espera.