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Parece piada. Mas é ciência

Pode crer: estudos da arte nos cemitérios ou da relação entre circo e riso são assuntos de interesse científico. Há pesquisas que primeiro fazem rir; depois, pensar. Algumas trarão descobertas importantes para o futuro do homem

andrea graiz

Harry Bellomo, da PUC-RS, convenceu a Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul da importância da arte nos cemitérios

Será que para ratos de laboratório faz diferença se uma pessoa está falando japonês de trás para a frente ou holandês, também ao contrário? Intrigados, pesquisadores da Universidade de Barcelona, na Espanha, foram conferir. E não deu outra: para os roedores, tanto faz. “Experiências anteriores mostram que isso acontece com macacos e com humanos recém-nascidos”, disse à Revista do Brasil o neurocientista Juan Manuel Toro, um dos autores da descoberta que, segundo afirma, ajuda a explicar a natureza de alguns mecanismos envolvidos na aquisição da fala. A grana para os testes veio do governo espanhol.

Depois de anos analisando raios X de quem, por acidente, engoliu um objeto qualquer, o radiologista Brian Witcombe, do Hospital Gloucestershire, em Gloucester, Inglaterra, ficou encafifado: o que aconteceria com o sistema digestivo daqueles que ganham a vida enfiando espadas goela abaixo? “O valor da pesquisa para cuidados médicos é mínimo”, admitiu Witcombe. “Mas ajuda a ilustrar a patologia e a fisiologia da deglutição.” O bolso dos súditos de Sua Majestade foi poupado. Doadores particulares engoliram a conta.

Ambos foram agraciados com o Prêmio Ig Nobel 2007. Toro venceu na categoria Lingüística. Witcombe, em Medicina. Criada em 1991 pelos editores da revista Anais da Pesquisa Improvável, a premiação anual “reconhece trabalhos que primeiro nos fazem rir e, depois, pensar”, definiu para a reportagem o químico Marc Abrahams, da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, um dos idealizadores da distinção – que ainda não dá prêmio em dinheiro.

Até agora, nenhum brasileiro foi agraciado com o Ig Nobel. Mas sobram por aqui trabalhos que a princípio fazem rir. Depois, pensar se o objetivo é mesmo de interesse público e, portanto, se merecem receber dinheiro do contribuinte. No Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil, do Conselho Nacional para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), do Ministério da Ciência e Tecnologia, dá para conhecer alguns. De fácil acesso na internet (http://dgp.cnpq.br/censos/), é um banco de dados que detalha os trabalhos e mostra se geraram novos procedimentos ou produtos.

A mãe no meio

Todo mundo xinga o juiz quando ele erra – e há quem lembre de sua santa mãe até quando ele não erra. Mas ninguém dá a mínima para as razões das falhas, que às vezes apagam o brilho do espetáculo e interferem no resultado do jogo. No Centro de Desportos e Recreação da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), no Paraná, há um grupo que estuda, entre outras coisas, como melhorar a performance física do homem, ou da mulher, do apito. Eles descobriram que sua atividade é predominantemente aeróbia; que, comparadas à dos jogadores, sua capacidade física é bem inferior; e que as juízas incluídas em alguns testes não tinham como apitar uma partida da categoria adulta masculina da Série A.

“Somos o único grupo no país que pesquisa cientificamente os árbitros”, diz Alberto Inácio da Silva, da UEPG, autor do único livro escrito na América Latina sobre as bases científicas e metodológicas para o treinamento de árbitros. E adianta que estão sendo lançados artigos inéditos: reposição hídrica, intensidade e gasto calórico do juiz durante o jogo. O financiamento raramente provém de agências públicas de fomento. Vem de patrocínio privado e do bolso da equipe. Ainda que na Confederação Brasileira de Futebol haja uma comissão de arbitragem que, entre outras atribuições, deveria apoiar federações estaduais na formação e aperfeiçoamento profissional de árbitros.

O palhaço é outro personagem importante nas arenas brasileiras. E igualmente ignorado pela pesquisa acadêmica. Porém, no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), há quem investigue o lado cômico do circo e a constituição do riso. Com recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e do CNPq, o estudo pretende descortinar o que a graça do palhaço tem a ver com o imaginário social. “Além do roteiro, do enredo e da encenação, o diálogo que o palhaço estabelece com a platéia, a partir do improviso, é a principal ferramenta para o sucesso da comicidade”, diz o pesquisador Mario Fernando Bolognesi.

E, se faltava atenção da ciência ao palco do riso, imagine ao cenário de lágrimas, despedidas e saudade. Como ainda não há no Brasil a tradição do estudo da arte cemiterial – ou seja, a memória cultural de algumas comunidades expressas na decoração de túmulos –, historiadores da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul resolveram introduzi-la. “Resgatar aspectos pouco pesquisados é sempre importante”, avalia o historiador Harry Bellomo. A primeira fase do projeto foi desenvolvida na capital gaúcha. A segunda em cemitérios das cidades de imigração alemã. A terceira chega a localidades de origem italiana. Uma próxima etapa será em áreas de povoamento luso-brasileiro.

Bellomo diz que entre as principais constatações estão a ideologia do cristianismo manifestada pelas diversas etnias e a homenagem aos grandes vultos da história gaúcha, muito presente na arte cemiterial. Segundo ele, o projeto nunca teve financiamento oficial. Mas admite que alguns participantes receberam bolsas da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande Sul e algumas prefeituras ajudaram com transporte para os pesquisadores. A publicação foi bancada pela editora da PUC-RS.

Retorno ou prateleira

O diretório do CNPq na internet mostra que a educação é a área que atrai mais interesse. São 16.174 linhas de pesquisa, 7.148 grupos, 8.287 pesquisadores e 4.262 doutores no assunto. Embora o setor lidere o ranking das pesquisas científicas, seu desempenho ainda vai mal, conforme têm apontado indicadores internacionais como o Programa de Avaliação Internacional de Estudantes (Pisa).

Diferentemente, as 19.969 linhas, com 6.825 grupos de cientistas, de pesquisa sobre saúde humana aparentam ser mais produtivas. Em julho passado, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) divulgou o avanço do Brasil, em duas colocações, na produtividade científica mundial, deixando para trás Suíça e Suécia. É o 15º. A ascensão se deve principalmente à medicina.

Agricultura e pecuária concentram 8.910 linhas, com 2.673 grupos de cientistas. O desenvolvimento de softwares e prestação de serviços de informática têm 2.147 linhas de pesquisa, com 1.112 grupos e 2.996 pesquisadores. Os estudos da Embrapa colocaram o Brasil na vanguarda da produção agropecuária. E a nossa informática está entre as mais avançadas do mundo.

Por que a escola não se beneficia da ciência? Há quem diga que os estudos nessa área e em outras ligadas a humanidades são mais baratos e menos complexos que de medicina, farmacologia e tecnologia. E servem apenas para carimbar um título de doutorado no currículo de muita gente que busca postos mais bem-remunerados. O barato sai caro.

O sociólogo Simon Schwartzman, presidente do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade, do Rio de Janeiro, diz que a maior parte do orçamento das agências de fomento estaduais e federais vai para as pesquisas aplicadas (para adquirir conhecimento já com uma aplicação específica em vista). Isso porque, para receber mais recursos, os pesquisadores de áreas básicas (com a função de acompanhar ou antecipar o avanço do conhecimento, sem aplicação em vista) apresentam seus projetos como se fossem aplicados.

Daí surgirem piadas do tipo “estou fazendo pesquisa básica no bicho aplicado”, ou “no Brasil tem mais gente vivendo de Chagas do que morrendo dessa doença”, como lembra Schwartzman. Para complicar, muitas dessas experiências se enquadram na chamada pesquisa de prateleira: o trabalho avança até a elaboração de um protótipo ou de um projeto-piloto. Mas nunca é transformado em produto disponibilizável ou em procedimento operacional. Criado recentemente, o chamado PAC da Ciência, Tecnologia e Inovação tem, entre suas metas, lançar até dez editais por ano para apoio à pesquisa básica e outros 50 para projetos com viés tecnológico.

Marc Abrahams, da Universidade Harvard, diz que a importância da pesquisa não pode ser reduzida à utilidade imediata. “À primeira vista muitas coisas parecem inúteis. Mas depois se revelam até mesmo revolucionárias”, opina. O físico Marco Antonio Raupp, presidente da SBPC, considera o valor utilitário tão importante quanto o cultural. “Tem estudo que parece inútil aos olhos da sociedade, como aqueles voltados à filosofia, por exemplo. Mas são eles que estabelecem as bases do conhecimento científico. E devem ser preservados”, diz. De todo modo, para Raupp, a ciência deve ser analisada do ponto de vista do interesse social, coletivo, e não individual. Muita gente do ramo – que faz ou acompanha ciência – pensa do mesmo jeito. “As universidades devem ser estimuladas a buscar parcerias no mercado, para converter os resultados em produtos e procedimentos com impacto positivo na vida das pessoas. Pesquisa tem de ser potencialmente útil”, diz Simon Schwartzman.

Um ponto une quem discute e dita regras: a aproximação entre cientista e sociedade. O PAC da Ciência determina a criação, até dezembro de 2008, de um sistema integrado de gestão e informação do fomento para o planejamento, acompanhamento e avaliação. É mais um passo em busca do diálogo. E não se está dizendo que é preciso pôr o pesquisador sob a batuta de quem não entende nada do que ele faz. Apenas que ele deve dialogar com a sociedade, que esta deve ser educada para entendê-lo e, juntos, possam definir o que, quando, para que e para quem pesquisar.