Brasil

O leite derramado

No apagar das luzes de 2007, o Senado derruba a CPMF e tira 40 bilhões de reais do Orçamento. Antes de se descobrir quem vai comemorar o quê, governo e oposição fazem as contas

José Cruz/ABr

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Que o sistema tributário brasileiro é burro e injusto e, há muitos anos, precisa de uma reforma radical, ninguém discorda. Nas terras de Pindorama, a grande massa de pobres que poderia formar um mercado consumidor acabou, por muitos anos, sustentando governos destinados a distribuir para uns poucos o butim que arrecadavam. A recente redemocratização do país não logrou reverter o quadro. Entramos na quinta legislatura após a Constituição de 1988, e o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), previsto pela Carta Magna, ainda não foi implantado. Enquanto o agronegócio quebra todos os recordes de faturamento, o Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural arrecada pífios 300 milhões de reais por ano.

No apagar das luzes de 2007, uma parcela do Senado formada majoritariamente pelos senadores do DEM e do PSDB se amparou nos defeitos de um tributo emergencial criado durante o governo tucano de Fernando Henrique Cardoso e na acusação de que a atual administração é perdulária para justificar um corte de cerca de 40 bilhões de reais, previstos só para 2008. Os quatro votos que faltaram ao governo para prorrogar a vigência da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira até 2011 poderiam ter sido obtidos entre os aliados. Mas faltou zelo na condução das negociações, na avaliação do ministro de Relações Institucionais, José Múcio.

“O governo não deu a atenção devida ao assunto, desconsiderou uma relação mais próxima com o Senado e deixou consolidar os votos contra a CPMF, que se tornou um símbolo no clamor da opinião pública pela redução da carga tributária”, analisa o líder do PSB e vice-líder do bloco de apoio ao governo no Senado, Renato Casagrande (ES). No Palácio do Planalto, há quem avalie que conseguir 49 votos na base aliada era quase impossível de qualquer maneira, dadas as condições que alguns senadores da própria base por vezes impõem para votar. Não por acaso, a partir de determinado momento as negociações passaram pelo PSDB.

Casagrande é um dos tantos que identificam uma motivação central nas atitudes da oposição: atrapalhar. “Usando esse discurso da redução da carga tributária, com a CPMF como símbolo, a oposição conseguiu uma base social para dar sustentação a sua proposta, mas, efetivamente, o interesse foi criar uma dificuldade para o desempenho do governo do presidente Lula.” A oposição, naturalmente, nega. “Não foi uma luta entre governo e oposição. Foi uma vitória da sociedade, que deseja viver num Brasil competitivo. Os governistas defenderam a visão do governo, a oposição defendeu o sentimento da sociedade”, diz o senador José Agripino (RN), líder do DEM.

Várias evidências, contudo, vão em outro direção. Governadores tucanos, como qualquer titular do Executivo, nas condições atuais, mostraram-se preocupados com os impactos da perda de arrecadação. José Serra e Aécio Neves, os presidenciáveis do partido, chegaram a dar declarações públicas favoráveis ao tributo, sob determinadas condições. A tentativa de acordo chegou a gerar uma carta do presidente Lula, lida durante a votação da PEC da CPMF, destinando toda a sua arrecadação à Saúde já em 2008, antes que a contribuição se extinguisse em 2009.

Depois do Carnaval

Os efeitos da perda da CPMF sobre o Orçamento deste ano só serão plenamente conhecidos depois do Carnaval, em fevereiro, quando o Congresso voltará a trabalhar sobre o tema. O governo terá de se organizar para seguir a diretriz estabelecida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, algo como assoviar e chupar cana: manter a economia que o governo faz para mostrar aos credores que pode rolar suas dívidas (o chamado superávit primário) ao mesmo tempo em que preserva intactos os programas sociais e os investimentos previstos pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

As perdas serão inevitáveis, na avaliação do presidente da Comissão Mista de Orçamento, senador José Maranhão (PMDB-PB). “A orientação geral é cortar o equivalente a 40 bilhões de reais desde que o governo não indique outra compensação”, diz ele. “Não havendo a criação de novos tributos ou a elevação de alíquotas, como já indicou o presidente Lula, a solução será um corte nas dotações de todos os Poderes, sobretudo em investimentos.”

O PAC, segundo o senador, estava na mira. “A oposição jogou nessa linha também. Naturalmente que há outros compromissos com forças políticas e econômicas interessadas em derrubar a CPMF, mas pesou, sobretudo, esse interesse político de inviabilizar os planos de desenvolvimento, de obras e até de serviços do governo federal.” Para complicar a vida da equipe econômica, há ainda o acordo assumido pelo governo com a oposição para aprovar a prorrogação da Desvinculação de Receitas da União (a DRU), incluída na PEC da CPMF. O governo selou um compromisso político de não criar de afogadilho novos tributos para compensar a perda com a CPMF.

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De qualquer modo, o estrago pode ser menor que o previsto. A espera até fevereiro possibilitará ao governo conferir o resultado fiscal das primeiras semanas para dimensionar melhor qual será o impacto real da extinção da CPMF – e pelo menos uma parte do dinheiro reinjetado na economia deverá retornar aos cofres públicos na forma de outros tributos. Além disso, a arrecadação vem crescendo mês a mês.

Há, ainda, outra providência a ser tomada para evitar possíveis efeitos deletérios da extinção total da CPMF, que nos últimos anos se convertera em poderoso instrumento de fiscalização. Para voltar a examinar discrepâncias entre renda declarada e movimentação financeira, o governo deverá regulamentar a Lei n° 105/2002, que autoriza a Receita Federal a acessar dados bancários para fiscalizar pagamento de tributos, em caso de indício de irregularidade – a Constituição de 1988 havia vetado esse tipo de operação.

A discussão sobre as virtudes ou defeitos da CPMF já são águas passadas, mas tudo indica que o tema dos impostos deve retornar com força em 2008, com o debate sobre uma reforma tributária. O atual projeto em tramitação está parado desde o início de 2004 na Câmara – por falta de acordo com os governadores, segundo o governo; e falta de vontade política, segundo a oposição. A excessiva carga tributária sobre o consumo – cerca de dois terços do total, segundo o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Unafisco) – é o principal foco das discussões. Se um tributo de 0,38% repassado ao preço final dos produtos já causou tanto qüiproquó, imagine o que é chegar a um acordo sobre um dos principais focos da reforma, o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), que alcança 25% sobre alguns produtos, em determinados estados.

A preocupação com o combate à chamada “guerra fiscal”, em particular com a unificação do ICMS, está presente nas exposições que o governo fez à base aliada no Congresso sobre sua proposta para a reforma tributária. A idéia geral é reduzir os vários tributos sobre consumo e o ICMS a dois impostos sobre o valor agregado, pagos aos estados e à União. Os prejudicados pela unificação das alíquotas seriam compensados por meio de um fundo de desenvolvimento regional. Os oposicionistas sinalizaram que continuarão insistindo na diminuição da carga tributária total e no controle de gastos do governo federal.

A arrecadação vem batendo recordes, mas não com aumento de impostos, e sim com os efeitos da melhoria da fiscalização e a consolidação do crescimento econômico, na avaliação do secretário adjunto da Receita Federal, Paulo Ricardo Cardoso. Para ele, a oposição dramatiza. “Nos últimos três anos, nós não tivemos nenhum aumento de imposto estabelecido por norma legal.”

Carga tributária é uma relação entre o total dos impostos pagos pelos cidadãos e o Produto Interno Bruto (PIB), o total de riquezas geradas no país. Cardoso lembra que, muitas vezes, há “erros grosseiros” nas estimativas usadas no debate, incluindo-se o imposto pago por multinacionais sobre os lucros que remetem para o exterior ou o gasto dos empregadores com o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), que não tem natureza fiscal. Hoje, segundo o governo, a carga está em torno de 37% do PIB – eram 35,6% em 2002, último ano do governo FHC, durante o qual cresceu algo perto de 10 pontos percentuais.

Clamor popular?

Quanto ao controle de gastos, vale lembrar que a própria campanha contra a CPMF apontou qual é a rubrica em que seria mais indicado cortar: o pagamento da dívida pública, por meio da redução da taxa básica de juros (Selic), estabelecida pelo Banco Central.

Um levantamento do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), organização não-governamental que se dedica a acompanhar a execução orçamentária, mostra que, apenas de janeiro a setembro deste ano, o governo gastou 167 bilhões de reais em juros, encargos e amortizações da dívida. Com todo o resto (de asfalto a aspirina e cafezinho, passando por salários, pensões e Bolsa Família) foram 366 bilhões.

Tendo em mãos esses números, a economista Eliana Graça, ligada ao Inesc, lembra que o discurso da oposição contra a “gastança” do governo não teve o mesmo vigor contra a prorrogação da DRU, uma autorização que o governo tem para remanejar ao longo do ano boa parte do Orçamento, inclusive de programas sociais. A extensão da DRU – outra criação tucana dos anos FHC – constava da mesma emenda constitucional que prorrogaria a CPMF e, ao contrário desta, foi acatada sem grandes discussões. “Essa aceitação quase unânime da DRU aponta para a continuidade da preponderância da questão financeira, mostra bem para onde o Senado estava olhando”, diz Eliana. “É curioso que, na hora de falar em corte de gastos, ninguém mencione os 200 e tantos bilhões previstos para o pagamento da dívida.”

A campanha pela extinção da CPMF, organizada por setores capitaneados pelo empresariado paulista, chegou a entregar ao Senado mais de 1 milhão de assinaturas recolhidas em apoio a sua causa. Nada garante, porém, que a maior parte da população sinta no bolso o fim do tributo. “O fim da CPMF foi uma decisão prudente, mas não há vitória nenhuma”, diz o advogado Osiris Lopes Filho, professor de Direito Tributário na Universidade de Brasília. “O problema mais brutal no país é que se tributa muito a população sem que ela tenha consciência disso.” Lopes Filho, secretário da Receita durante o governo Itamar Franco (1993-1994), estima que 90% da CPMF seja paga pelas empresas, não por pessoas físicas. “Assim, o valor gasto no tributo vai para o preço final dos produtos”, explica. Ele acredita que a experiência da CPMF poderá ser aproveitada na discussão da reforma tributária, a partir de fevereiro. “Era um tributo ruim, mas, nesses 11 anos, auxiliou muito no financiamento da Saúde, da Previdência, foi uma experiência interessante que poderá ser aproveitada. Agora se inicia um novo capítulo nessa história, vamos ver o que se dará.”

O fim da história
A CPMF surgiu em 1996, idealizada pelo então ministro da Saúde, Adib Jatene, para financiar o Sistema Único de Saúde. O SUS enfrentou dificuldades quando recursos da contribuição social de empregadores e empregados – antes parcialmente destinados ao sistema – passaram a ser absorvidos exclusivamente pela Previdência Social. A alíquota de 0,2% saltou para 0,38% ainda no governo FHC, e chegou a 1,38% do PIB, patamar em que permanece até hoje. Foi prorrogada até 2004 por meio de duas emendas constitucionais, também da gestão tucana. Uma terceira emenda, já na gestão petista, em 2003, arrastou a cobrança até o fim de 2007. Originalmente, a lei previa que toda a arrecadação da CPMF deveria ser destinada ao Fundo Nacional de Saúde. Mas da arrecadação estimada com a contribuição para 2007, de pouco mais de 35 bilhões, 17% voltaram para o Tesouro por conta da DRU, cerca de 40% foram para a Saúde e o restante para a Previdência Social e programas sociais como o Bolsa Família.