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Na ponta do mapa

João Pessoa é a cidade mais oriental do continente, uma das menores e mais verdes do Nordeste – “onde o sol bate primeiro”, dizem. Declarado patrimônio histórico e cultural, seu Centro Histórico também traz exemplos de recuperação da cidadania

João Correia Filho

Vista do Centro Histórico, às margens do Rio Sanhauá

A arquiteta Sônia González não consegue esconder a euforia por sua mais nova conquista, que é também a de uma cidade inteira. No dia 6 de dezembro de 2007, na última reunião do ano do Conselho Consultivo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o órgão federal admitiu João Pessoa para o seleto grupo dos municípios que têm o centro histórico tombado como patrimônio nacional. Coordenadora da Comissão Permanente de Desenvolvimento do Centro Histórico, Sônia conta que o trabalho de recuperação da cidade começou muito antes de o pedido de tombamento ter sido encaminhado ao Iphan, em 2002, por um conjunto de entidades ligadas à preservação da cidade.

“Em 1987, criou-se uma equipe multidisciplinar encarregada de levantar o potencial histórico, socioeconômico, turístico e urbanístico da cidade, dados que auxiliaram no tombamento de 502 edificações, 25 ruas e seis praças, mais o Porto do Capim, região onde a capital paraibana nasceu”, explica. Parceria entre órgãos federais, estaduais, municipais e a Agência de Cooperação Internacional do governo espanhol, a comissão chegou a um plano de revitalização e a uma estratégia para evitar a degradação.

João Pessoa já nasceu cidade, em 5 de agosto de 1585, sem passar pela condição de vila, graças a sua posição estratégica (ponto mais oriental das Américas) e por ter sido fundada pela Cúpula da Fazenda Real Portuguesa. Ganhou o nome de Nossa Senhora das Neves, a santa do dia. Meses depois, em homenagem ao rei da Espanha, Felipe II, que na época dominava Portugal, virou Filipéia de Nossa Senhora das Neves. Mais tarde foi batizada de Parahyba e, em 1930, ganhou o nome do então presidente da província, João Pessoa, morto durante a campanha presidencial daquele ano, na qual concorria como vice ao lado Getúlio Vargas.

Muitas ruas da capital paraibana ainda são calçadas em pedra. Ali se nota a influência das quatro ordens religiosas – carmelita, jesuíta, beneditina e franciscana. Como na Igreja de São Francisco, concluída em 1770, um importante monumento de influência barroca. A cidade mantém seu traçado urbano praticamente original e suas edificações compõem um mosaico artístico que agrega estilos arquitetônicos de várias épocas, desde o barroco até os casarões em art déco.

É na Bahia?

“Mas há 20 anos isso tudo não estava assim tão fácil de ver”, observa Sônia González. Um dos obstáculos iniciais foi resgatar os edifícios escondidos atrás de falsas fachadas, de construções irregulares, de muita sujeira. Depois de um longo trabalho de recuperação, o casario foi se destacando e passou a compor o cenário da cidade, integrando o conjunto esquecido até mesmo pela população. “Quando começamos o projeto de revitalização da Praça Antenor Navarro, fizemos várias fotografias e levamos para revelar. O laboratorista perguntou se aquele lugar lindo era na Bahia”, brinca a arquiteta.

Embora o tombamento represente um grande avanço, Sônia faz questão de frisar que a principal conquista de João Pessoa nesses últimos 20 anos é ter seu patrimônio valorizado pelos próprios moradores. “Hoje o Centro Histórico faz parte do imaginário das antigas e novas gerações. Logo que cheguei aqui poucos conheciam a riqueza que havia na cidade. Agora, escolas, profissionais e estudantes de Arquitetura, História e Turismo desenvolvem trabalhos com o patrimônio que lhes pertence. Há orgulho de ser pessoense”, completa.

Diego Freitas, 26 anos, entusiasma-se com o tombamento. Ele teve a vida mudada enquanto mudava a cidade. É aluno da sexta turma da Oficina Escola de João Pessoa, entidade que há 16 anos forma jovens em profissões diretamente ligadas à recuperação da cidade, como alvenaria, pintura, marcenaria, carpintaria e serralheria.

A Oficina também nasceu do intercâmbio com o governo espanhol, quatro anos depois do Plano de Revitalização, da criação, justamente pela dificuldade que surgiu de obter mão-de-obra para as restaurações. Já formou mais de 300 jovens de 18 a 25 anos, advindos de famílias de baixa renda, da rede pública municipal e estadual.

“Antes eu não tinha profissão. Agora posso fazer uma universidade, ir pra Europa fazer especialização, conhecer novas técnicas”, diz. Diego é monitor de novos alunos, e orgulha-se de cada detalhe das paredes da nave lateral da Igreja de São Francisco, restaurada por ele e seus companheiros.

A diretora Nahía Cajú explica que a Oficina Escola já formou sete turmas, cada uma responsável pela restauração de um dos imóveis históricos da cidade. O primeiro foi o Hotel Globo, prédio do início do século 20 e um dos cartões-postais do Centro Histórico. Outro destaque é o Casarão dos Azulejos, do final do século 19, um dos últimos remanescentes desse tipo de revestimento em azulejaria portuguesa. “Os alunos recebem bolsa, refeições e transporte, mas o mais importante é a conquista de uma profissão e de metas de vida”, diz.

No interior da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, outros sete jovens retocam cada detalhe. Datada do final do século 16, a igreja teve recentemente o teto totalmente arrancado e restaurado, num trabalho minucioso que lhe devolveu mais de 400 anos de história. Thiago Santos, de 20 anos, e Élida de Araújo trabalham no altar lateral, com lixa e pincel. Fabíola Santiago Pereira, Alisson França da Silva, Luiz Antonio Queiroz, Jailson Soares Ferreira e Daniel da Silva dedicam-se à pintura do altar central, todo branco com desenhos em alto-relevo. Eles falam da amizade e fazem planos para o dia em que o trabalho estiver pronto. “Vai ser um grande orgulho pra minha família, quero que todo mundo venha e se emocione com o que fizemos”, diz Élida, que optou por uma profissão pouco comum para mulheres. Hoje todo mundo tem admiração pelo seu trabalho e já não torcem o nariz diante da marceneira.

Os sete jovens também falam da amizade, um valor preservado por eles até mesmo durante as tarefas mais difíceis. “Alguns trabalhos exigem que todo mundo esteja em sintonia. Aqui, já chegamos num ponto em que um entende o que o outro quer só pelo olhar”, diz Daniel da Silva. “Somos amigos, e somos uma equipe”, completam os companheiros, quase em coro.

João Correia FilhoCasarões
Casarões da Praça Antenor Navarro

Mais responsabilidade

Eliane de Castro, superintendente regional do Iphan, observa que o tombamento de um centro histórico não representa o fim de um trabalho: “É o começo de uma grande responsabilidade para com a cidade. Além de manter o que já existe, é preciso cumprir uma série de metas e projetos que serão implantados daqui em diante”. Entre eles está a revitalização do Porto do Capim, nas margens do Rio Sanhauá, onde reside uma das comunidades mais carentes de João Pessoa.

O Porto do Capim foi criado pelos portugueses em águas fluviais, adentrando o continente, diante da ameaça de ataques dos franceses e holandeses. Também serviu para escoar a produção local, sobretudo do açúcar. Ao seu redor estabeleceu-se a importante região comercial do Varadouro, onde foram construídos armazéns e a alfândega. A partir de meados do século 19 chegaram as primeiras ferrovias, que se expandiram em sentido norte, até o porto da cidade de Cabedelo, provocando o abandono do Porto do Capim. “O núcleo começou a se formar justamente com a transferência do porto, na década de 1930, o que faz com que os moradores estejam muito identificados com essa região”, explica Sônia González.

Segundo a arquiteta, ainda neste ano serão construídas 295 unidades habitacionais, para que sejam transferidas as pessoas dessa região para uma área próxima, com as mesmas características. Também está incluída no início do projeto a restauração dos dois prédios da alfândega, que abrigarão o futuro Museu da Cidade de João Pessoa, e da antiga Superintendência, que será um Centro de Cultura Popular.

Para levar mais vida ao Centro, a prefeitura, em parceria com a Caixa Federal, lançou o Programa Moradouro. “Venha morar no cartão-postal da cidade”, diz a placa sobre os casarões em ruínas que vão virar lares. “O objetivo é trazer mais moradores para a região histórica, o que atrairá mais comércio, mais movimento, mais preservação”, diz Ruth Avelino, diretora de Divulgação e Marketing da Secretaria de Turismo. A Caixa abriu inscrições para o financiamento de 40 apartamentos. A fila para as unidades, que, estima-se, serão entregues ao longo de 2008, já tem mais de 200 pessoas.

Projetos semelhantes já foram implantados em outras cidades históricas do país, como São Luís e Salvador. O Pelourinho encontra-se na fase de realocação dos seus antigos moradores. Serão 76 famílias que o Iphan vai reinserir em uma das regiões turísticas mais importantes da capital baiana. João Pessoa tem aí o exemplo de iniciativas anteriores, e pode aprender com erros e acertos os caminhos para que haja realmente uma revitalização, e não uma maquiagem de seu Centro Histórico. Afinal, a História, essa que tanto nos ensina, se faz com pessoas, todas as pessoas de uma cidade. E com cidadania.

Vá além
João Pessoa é pouco lembrada, se comparada com as badaladas Salvador, Recife e Fortaleza. É uma das menores capitais do Nordeste e tem ares de interior. Além do Centro aconchegante, é muito arborizada, tem 25 quilômetros de praias, a maioria de águas calmas e cristalinas, boa rede de hospedagem, várias opções de passeio, e merece ser mais lembrada como destino turístico e cultural.
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