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Mais uma boa safra

O cinema nacional fez bonito nos principais festivais de 2007 e começa o ano com bons lançamentos. Mas, como premiação não garante divulgação, vale prestar atenção nas estréias, pois o cartaz dura pouco

Edu ribeiro/divulgação

João Miguel e Fabiula Nascimento na comédia Estômago

Os festivais de cinema de Gramado (RS), Brasília e Rio de Janeiro, junto com a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, são os mais importantes eventos cinematográficos anuais do país. Em 2007 houve pelo menos sete grandes vencedores: Estômago, Mutum, Estórias de Trancoso, Castelar e Nelson Dantas no País dos Generais, Deserto Feliz, Cleópatra e Chega de Saudade. Encantaram jurados oficiais e o público dos festivais, mas nada garante que levarão multidões aos cinemas. De todo modo, quem aprecia e valoriza o cinema brasileiro deve ficar atento ao que está (ou deveria estar) por vir em 2008.

O primeiro desses premiados a estrear nas salas exibidoras foi Mutum. Considerado o melhor longa-metragem de ficção na opinião do júri no Festival do Rio, o filme é baseado em contos de Guimarães Rosa e é o nome de um lugarejo do sertão mineiro, onde vive o menino Thiago. Entrou em cartaz em meados de novembro com oito cópias – três em São Paulo, três no Rio e duas em Belo Horizonte. E não se sabe se ainda estará passando no momento em que você lê esta reportagem. “É o melhor filme brasileiro do ano. Suas virtudes são a simplicidade, a beleza, as interpretações fantásticas, a homogeneidade dos coadjuvantes. Parece que Sandra Kogut leu Corpo de Baile, de Guimarães Rosa, deixou passar um tempo e só depois o adaptou”, avalia o crítico literário Geraldo Galvão Ferraz. “É a crônica de um interior atrasado, que recebe os refugos da civilização, e não as benesses. O olhar de Thiago é o centro, como ele vê o pai rude, a mãe submissa, o irmão querido. Não é à toa que um milagre de transformação se dá por meio de um par de óculos.”

Para a diretora carioca Sandra Kogut, Mutum tem algo muito popular, mas, como não tem atores de TV e foi premiado em festivais, é “etiquetado” como filme de arte e menos comercial. “Os filmes assim classificados já são lançados de maneira a não ter muita chance. São etiquetas arbitrárias e muitas vezes injustas. Por que um filme não pode ser apreciado em festivais e pelo grande público também?”

Mas não é sempre que os filmes premiados passam despercebidos. O Cheiro do Ralo, de Heitor Dhalia, e O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias, de Cao Hamburger, indicado a concorrer ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 2008, foram destaques da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Elogiado na mesma Mostra, de 2006, o filme Noel, o Poeta da Vila, de Ricardo van Steen (que ilustrou a capa da Revista do Brasil em fevereiro), não teve a mesma sorte e demorou mais de um ano para estrear.

Dos vencedores deste ano, uma das maiores promessas é o longa de estréia do diretor curitibano Marcos Jorge, Estômago, escolhido pelo voto popular no Festival do Rio e previsto para entrar em cartaz em 25 de janeiro. Estrelado por João Miguel, com participação do “titã” Paulo Miklos, narra a história de um imigrante nordestino que desenvolve seu talento nas cozinhas de um bar, de um restaurante italiano e de uma casa de detenção. “A crítica elogiou e o público respondeu entusiasmado. Mas sobraram poucos recursos para promover sua exibição. Resultado: mesmo premiado, demora a aparecer”, analisa Marcos Jorge.

Também eleito pelo voto popular, no Festival de Brasília, Chega de Saudade, previsto para chegar às salas de exibição em 21 de março, é estrelado por nomes conhecidos como Maria Flor, Tônia Carrero, Betty Faria e Stepan Nercessian. O filme mostra diversos personagens que se encontram num baile da terceira idade de um salão de dança em São Paulo. “O cinema que eu faço e em que acredito quer dialogar com o público. Então, ter esse reconhecimento e vibração no festival foi estimulante”, comenta sua diretora, Laís Bodanzky (Bicho de Sete Cabeças), também premiada como melhor diretora. “O júri de um festival não diz qual filme terá sucesso de bilheteria, apenas discute linguagem e técnica; e muitos filmes voltados para o mercado nem entram em festivais”, observa Laís.

A polêmica esteve presente no Festival de Brasília quando o filme escolhido pelo júri técnico foi anunciado sob vaias. Cleópatra, do veterano diretor carioca Julio Bressane, estrelado por Alessandra Negrini, Miguel Falabella e Bruno Garcia, gira em torno da história da última rainha egípcia da dinastia de Ptolomeu. Apesar de ainda não possuir distribuidora, está previsto para estrear em abril. Na opinião de Bressane, a escolha não basta para trazer reconhecimento e interesse. “Nunca consegui mais do que um pequeno orçamento e distribuição de uma ou duas cópias. Nunca tive grandes produções, muito menos distribuição de 100, 200, 300 cópias”, acrescenta.

“Existe no Brasil uma ruptura muito forte entre o cinema que se faz e o gosto do público. Não há nenhum trabalho de marketing para situar um filme, o que seria indispensável”, indica o crítico Inácio Araújo, que fez parte do corpo de jurados do Festival de Brasília. “Hoje o modo de financiamento é voltado para a produção; a distribuição e a exibição são penalizadas”, diz Araújo.

cleopatra

Lucro na pipoca

Carlos Alberto Prates Correia, diretor do melhor filme do Festival de Gramado, Castelar e Nelson Dantas no País dos Generais, vai além: “Uma alternativa interessante para as produções seria a transformação desses eventos em mostras com maior permanência dos filmes em cartaz e remuneração condigna para eles. Estaríamos diante da primeira etapa da criação de um verdadeiro circuito de festivais, em escala nacional, aproveitando o aparato mercadológico que se forma em torno deles”.

Castelar e Nelson Dantas no País dos Generais é uma crônica em torno da produção cinematográfica dos mineiros Joaquim Pedro de Andrade, Andrea Tonacci, Alberto Graça, Schubert Magalhães e o próprio Carlos Prates, durante o regime militar. Deve estrear em 21 de março. “Em 1981, com o Cabaret Mineiro, ganhei também o prêmio de melhor filme em Gramado e imediatamente as salas de exibição, que estavam lacradas, se abriram para mim. Gostaria que hoje acontecesse o mesmo”, conta o veterano diretor.

O pernambucano Paulo Caldas, melhor diretor no Festival de Gramado por Deserto Feliz, concorda com os colegas. “Nosso mercado exibidor hoje é quase restrito aos multiplex dos shoppings, que cobram ingressos inacessíveis ao brasileiro e são feitos para acomodar o filme americano, da decoração às pipocas gigantes. Na verdade, hoje o maior lucro dessas salas é a pipoca”, garante. Previsto para estrear com 12 cópias entre final de março e início de abril, é bem provável que Deserto Feliz fique longe dos tais multiplex. Afinal, estrelado por João Miguel, Zezé Motta e Hermila Guedes, ele trata de temas densos como tráfico de animais e exploração sexual de meninas.

Outro experiente cineasta, o paulista Augusto Sevá teve seu Estórias de Trancoso escolhido pelo público da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo do ano passado o melhor longa-metragem brasileiro de ficção, mas não há data prevista para estréia. Sem nomes conhecidos do grande público, o filme trata de um romance adolescente ambientado numa comunidade de pescadores, no litoral baiano, que durante a década de 1980 tem seus valores transformados em função da chegada da civilização urbana.

De acordo com o site especializado Filme B, enquanto na Islândia o gasto per capita da população com cinema foi de 47 dólares, o gasto médio do brasileiro foi de 1,71. E, se já não bastasse o cinema não ser exatamente um forte hábito de consumo do brasileiro, a participação das produções nacionais nesse hábito é ainda mais modesta. De acordo com Sevá, que também é diretor da Agência Nacional do Cinema, nos últimos três anos o cinema brasileiro observou uma ocupação média de 11% do mercado de salas. “O patamar civilizado está em 40%, caso da França, no Ocidente, e do Irã, no Oriente. Atingir esse objetivo passa por incrementar os três elos da cadeia: a produção, a distribuição e a exibição. E também por encarar o que ainda é tabu: a oferta de filmes que sejam produtos comerciais e de empatia popular. Já produzimos mais de 60 filmes ao ano, mas apenas meia dúzia alcança mais de 1 milhão de espectadores.”