história

Depois daquela corte

A transferência da corte portuguesa para o Brasil, há 200 anos, foi fundamental no processo de independência, mas deixou traços na sociedade como concentração de renda, burocracia e conservadorismo

Museu Histórico da Cidade do Rio de Janeiro/Funarj/reprodução de Rodrigo Queiroz

Chegada de D. João à Igreja do Rosário, óleo de Armando de Martins Viana

O historiador pernambucano Evaldo Cabral de Mello anda irritado. Detesta efemérides e seu telefone tem tocado bastante por conta de uma delas: o aniversário, em março de 2008, dos 200 anos da chegada da corte portuguesa ao Brasil. Enquanto as escolas de samba do Rio de Janeiro afinam enredos e passos que glorificam a vinda de dom João VI, Carlota Joaquina e toda a trupe portuguesa para o Brasil, o historiador sente arrepios: “Esse oba-oba, isso é invenção do Cesar Maia, glorificar essa passagem pouco honrosa da história brasileira”, pontua, em tom áspero, sem querer prolongar a conversa.

Mas o mau humor do historiador vai continuar. A lembrança da vinda da família real ainda vai consumir um bom espaço da mídia e das livrarias. Mas por que tanta discussão e tanto interesse por essa viagem realizada no ano de 1808? Bem, com aprovação ou não de Cabral de Mello e outros “inimigos” de dom João VI, a vinda da corte foi um marco histórico de suprema importância para o Brasil.

Foi em 1808, quase sem querer, que começou a se desenhar o fim da era colonial. Catorze anos depois da viagem da corte para o Rio de Janeiro, em 1822, surgiria o povo chamado brasileiro, pois até então todos os nascidos aqui eram também portugueses. Surgia o Brasil independente, mas sem honras de guerra pela liberdade travada pelo povo contra uma metrópole.

Para entender o cenário é preciso voltar a 1807 e para a Europa. Napoleão Bonaparte decidiu lançar suas tropas sobre Portugal no início do século 19 por conta da guerra contra a inimiga Grã-Bretanha, aliada de Portugal. Quando o imperador francês mandou atirar contra este, com a ajuda da Espanha, efetivou uma idéia que já passava pela cabeça da monarquia lusa havia tempos: transferir a corte para sua colônia na América. Com a vinda da corte à colônia, as relações desta com a metrópole se tornam muito distintas das estabelecidas pelas outras colônias da América com a Espanha. Embora possa parecer um ato de pouca honra fugir sem lutar, a decisão é considerada sábia, do ponto de vista da monarquia, pelos historiadores. O mundo sabia que as oportunidades na terra nova eram grandes. Além do mais, Portugal não tinha a menor condição de resistir.

“A saída da corte manteve a integridade de monarquia portuguesa. Tanto dom João VI quanto seus ministros perceberam que se ficassem por lá fatalmente assistiriam ao fim da monarquia”, afirma o historiador João Paulo Garrido Pimenta, doutor em Brasil Colônia pela Universidade de São Paulo, co-autor, com Andréa Slemian, do livro O Nascimento Político do Brasil – As Origens do Estado e da Nação (1808-1825). A escolha pelo Rio de Janeiro não tem grandes mistérios, a cidade era a mais importante na época, pela localização geográfica, e desde 1763 fora elevada à condição de sede da colônia portuguesa, em substituição a Salvador.

Antes de chegar ao Rio, em rápida passagem pela Bahia, dom João proclama a abertura dos portos que vai intensificar todo o comércio do Brasil com as nações amigas de Portugal, para lucro principalmente da Grã-Bretanha, sua grande aliada. “Com essa medida o fluxo de pessoas cresce em todos os portos. Os estrangeiros também começam a chegar. O comércio explode, para benefício dos mais poderosos, e, ao não ver mais o rei como algo de fora, planta-se uma semente de que o Brasil poderia um dia viver sem a tutela de Lisboa”, afirma Pimenta.

Independência singular

No Brasil, a declaração do fim da colônia foi uma vontade da própria corte, apoiada pela elite carioca e do centro-sul (São Paulo e Minas Gerais), que acabaria muito beneficiada com a transferência da corte para o Brasil. O movimento comercial foi grande, mais de 5 mil portugueses (há quem fale em 15 mil) aqui chegaram, e o Rio de Janeiro mudou da noite para o dia. Famílias tiveram de deixar a própria casa, pelo menos um quarto da população foi parar na rua.

“Tudo no Brasil foi diferente. Aqui não há o imaginário heróico da independência. Mas não podemos dizer que foi pacífico, que não houve luta. Com a vinda da corte e o fortalecimento do Rio de Janeiro, começa a existir um descontentamento intenso em outras regiões, com o fato de ter de engolir a vontade do comando real e da elite fortalecida”, afirma a historiadora Maria Odila Leite da Silva Dias, professora da PUC de São Paulo, autora da tese A Interiorização da Metrópole.

De todo modo, foi bem diferente dos países vizinhos, onde a conquista da independência envolveu conflitos sangrentos contra as colônias “rebeldes”. Segundo relato do professor Pimenta, da USP, nos países vizinhos o militar José de San Martín, que comandou um dos dois grandes exércitos de expulsão dos espanhóis da América (o outro foi Simón Bolívar), foi auxiliado por um mercenário britânico, Thomas Cochrane. Dado o sucesso externo, a corte portuguesa também chamou Cochrane para forçar o Maranhão e o Pará, na marra, a aderir ao Império do Brasil. “Em 1822 essas duas províncias queriam continuar unidas a Portugal, e dom Pedro, filho que dom João deixou por aqui, pagou um bom dinheiro para Cochrane esmagar a resistência”, afirma o historiador.

É bom lembrar que há 200 anos não existia o conceito de nação ou unidade. O Brasil era, de fato, um aglomerado de várias colônias. Assim, o Norte e o Nordeste se viram obrigados a pagar taxas para o Rio de Janeiro e nasceu a revolta: “Existia em 1822 quem pensasse que o Brasil deveria se tornar independente formando não uma monarquia, mas sim uma república. Isso já ocorrera na Revolução Pernambucana de 1817 e reincidiria em Pernambuco em 1824, na chamada Confederação do Equador. Nesses dois momentos, o republicanismo foi muito inspirado no dos Estados Unidos da América”, relata Pimenta. Se ele tivesse prosperado, certamente o Brasil teria se dividido em três ou quatro nações.

reprodução do livro 1808, de Laurentino Gomes. Ed. Planeta (2007)dom João para o Brasil
Embarque de dom João para o Brasil (pintura anônima)

Nova ordem social

Mas, mesmo antes da Independência, a herança conservadora que a vinda da família real deixou no Brasil – traço que pode ser observado na sociedade brasileira até hoje é uma das coisas que atormentam o professor Evaldo Cabral de Mello. Enquanto Portugal aderia ao liberalismo, no Brasil a corte conservava métodos aristocráticos, e a alta burocracia é atrelada ainda à herança portuguesa. O sonho de expansionismo também é criticado: “Na Guerra da Cisplatina só houve gasto de dinheiro e desperdício, uma guerra sem vencedores que culminou na formação do Uruguai”, reforça Pimenta. A professora Maria Odila prefere exemplificar o impacto da família real na definição das classes sociais. “Com a vinda da corte quem era rico ficou mais rico, o poder ficou concentrado e o tráfico de escravos acabou se prolongando por mais tempo, pois era preciso ter mão-de-obra.”

Por fim, a família real não traz apenas pessoas, mas também todo o aparato burocrático, órgãos públicos. Nasce a imprensa no Brasil – até 1808 tudo o que era impresso vinha da Europa. Depois há a revogação da lei que proibia a manufatura no Brasil e a instalação do Banco do Brasil, da Biblioteca Nacional, do ensino médico, do Jardim Botânico. “Não é meu papel como historiadora dizer se foi bom ou ruim, mas uma coisa que não se pode negar é que a vinda da família real mexe totalmente com a estrutura da sociedade e impõe novos valores e outra cultura”, afirma Maria Odila.

Quando Napoleão perdeu a guerra, Portugal exigia a volta da família real, e dom João, com a esposa, Carlota Joaquina, os sete filhos, mais 4 mil cortesãos partiram. Ficou apenas Pedro. Para aumentar a polêmica, saíram do Brasil com cofres lotados. “Sim, a família real sacou tudo o que havia de dinheiro, em espécie, no Banco do Brasil. Isso só não foi um típico ‘saque’ porque essa mesma corte era a maior depositária de fundos no banco desde o início de seu funcionamento, em 1809”, atesta João Paulo Pimenta. Cabral de Mello discorda: “A corte era parasita e daqui foi embora deixando, sim, um banco falido”.