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A febre da exclusão

Malária, dengue, mal de Chagas, leishmaniose, tuberculose, entre outras doenças, afetam 90% da população mundial, a maioria pobre. Ignoradas por laboratórios e governos, são alvo de apenas 10% das pesquisas científicas

Gerardo Lazzari

A paulistana Ivana está longe de ser uma excluída social, mas a dengue não poupa ninguém. Anos de descaso a transformaram em epidemia

Em junho passado, quando morava em Teófilo Otoni (MG), o estudante Lucas Cardoso Ramos, 20 anos, contraiu dengue. Foram 14 dias de febre alta, dores intensas pelo corpo e vômitos. Emagreceu e só não perdeu aula porque logo vieram as férias. “Do comércio do meu pai, na frente do pronto-socorro, dava para ver o entra-e-sai de gente com dengue”, conta Lucas, que há dois meses mora em Cotia, na Grande São Paulo. A estudante paulistana Ivana Cabral, 23 anos, moradora de bairro de classe média da capital, viveu o mesmo drama. “Depois de duas semanas, estava tão fraca que não conseguia subir nem um degrau”, conta. Além dela, adoeceram o namorado, um tio e um primo.

A epidemia, que neste ano afetou mais de 500 mil brasileiros e matou pelo menos 121, é 50% maior que em 2006. O aumento dos casos expõe falhas e limitações na prevenção focada no combate ao mosquito transmissor, o Aedes aegypti. “Areia nos vasos e nada de pneus e garrafas no quintal ajudam. Só que as fêmeas põem seus ovos em poças deixadas pela chuva nas lajes das casas populares nas periferias, nas caixas d’água abertas e até na cobertura de prédios em regiões centrais”, opina Pedro Luiz Tauil, professor e pesquisador do Núcleo de Medicina Tropical da Universidade de Brasília. Vicente Amato Neto, do Departamento de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da USP, põe o dedo na ferida: “Para a maioria das pessoas com necessidades básicas e urgentes para suprir, evitar a proliferação do Aedes não é prioridade”.

O consenso entre especialistas é que só a vacina pode barrar o avanço galopante da dengue. O Instituto Butantan, ligado ao governo estadual paulista, está testando um imunizante produzido em parceria com o Ministério da Saúde americano. Nos Estados Unidos, a vacina mostrou-se eficaz em macacos. No ano que vem, têm início os testes em humanos. Se tudo der certo, em 2010 começará a vacinação. Obter um soro contra dengue é difícil. É preciso vencer os quatro tipos de vírus transmissores e, ao mesmo tempo, não causar reação imunológica que leve à febre hemorrágica – que pode matar. “Não faltaria conhecimento científico se houvesse estímulo financeiro para mais pesquisas”, diz o ministro da Saúde, José Gomes Temporão.

Negligenciadas

Do mesmo modo, malária, doença de Chagas, hanseníase, leishmaniose, esquistossomose, elefantíase, doença africana do sono humano estão entre as incluídas na categoria das doenças negligenciadas. Atingem 90% da população mundial, debilitam, incapacitam para o trabalho e matam. Como as vítimas, em sua maioria, estão em regiões de extrema pobreza, sem dinheiro para comprar remédio, são ignoradas pelos centros de pesquisas, pelos laboratórios e pelo mercado.

Estima-se que 10% das despesas mundiais com pesquisas focam o tratamento desses problemas, que, nas duas últimas décadas do século 20, foram beneficiados com apenas 1% das 1.393 novas drogas criadas no período. A estagnação é denunciada pela organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF). Os fármacos para essas enfermidades são ultrapassados, ineficazes pela resistência bacteriana e cheios de efeitos colaterais.

A malária é a doença parasitária tropical com maior impacto social e econômico em mais de 90 países, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). Em número de mortes perde só para a aids. Infecta 300 milhões de pessoas todo ano, matando um quinto delas. No Brasil são registrados 500 mil casos anuais. Aqui a doença não chega a matar 0,1%, mas traumatiza.

Sem trabalho, Kátia Silene Ataíde Lima, 32 anos, deixou Belém rumo ao garimpo de Siquini, na Guiana Francesa, em 2006. O sonho de vida melhor logo virou pesadelo. A malária foi tratada sem acompanhamento médico. Infectada pela segunda vez, voltou a Belém e tratou-se no Instituto Evandro Chagas (IEC), vinculado ao Ministério da Saúde e referência em doenças tropicais. Teimosa, retornou ao garimpo e adoeceu novamente. De volta ao IEC, recebe ali mesmo os medicamentos. Os efeitos colaterais são um sofrimento à parte. “Muita tontura, enjôos, diarréia e vômitos”, diz Kátia.

O Instituto atende também casos de leishmaniose. Comuns no Nordeste, estão se espalhando pelas Regiões Norte e Centro-Oeste, chegando à periferia de Brasília. A pequena Ana Paula, de 6 anos, sentiu isso da pior forma. A ferida que surgiu no local da picada de um mosquito continuou aumentando mesmo com o uso de uma pomada receitada no posto de saúde. A doença só foi controlada quando passou a ser tratada no IEC, época em que a menina teve muitas dores de cabeça e nas articulações, náuseas e vômitos como reações. A dermatologista Silvia Müller, que atende ali, diz que faltam na região médicos preparados para cuidar desses casos. Daí as complicações e a subnotificação. “A cada dois dias aparecem sete novos casos de leishmaniose cutânea”, diz.

DAVID ALVESana
As Regiões Norte e Nordeste do Brasil são pródigas em doenças “esquecidas” e em falta de profissionais qualificados para reconhecê-las. Ana Lúcia contraiu hanseníase e Ana Paula, de 6 anos, leishmaniose. Depois de serem mal-diagnosticadas, ambas encontraram tratamento no Instituto Evandro Chagas, ligado ao Ministério da Saúde, em Belém

Terapias limitadas

O Pará tem a maior média nacional de hanseníase. E, para piorar, jovens de 12 a 18 anos estão adoecendo. Há dois anos, a agricultora Ana Lúcia Guedes Soares foi contaminada. Procurou um posto de saúde no interior paraense, onde morava, e continuou trabalhando na roça enquanto se tratava. As reações da medicação a fizeram desistir do tratamento. Com o avanço da doença, retomou-o na Universidade Federal do Pará. Ficou internada por um mês. A cura depende do coquetel de drogas. Porém, se sua suspeita de gravidez for confirmada, terá de parar com os remédios, pois há risco de malformações fetais.

Oitenta por cento dos casos de tuberculose no mundo estão concentrados em 22 países, entre os quais o Brasil é o único americano presente, segundo a OMS. São estimados 110 mil novos casos por ano. A vacina BCG, que faz parte do calendário oficial, não imuniza contra todos os tipos da doença. O sanitarista belga Michel Lotrowska, do MSF, diz que a situação é grave. “O teste diagnóstico tem 100 anos, as drogas de primeira linha têm mais de 30 anos, o tratamento leva de seis a oito meses e há muitas reações. Quando há resistência, a terapia dura um ano e meio”, relata. O pior, segundo ele, está a caminho: um tipo mais resistente da doença para o qual não há tratamento. A esperança está nos 40 compostos em estudos que, na melhor das hipóteses, resultarão em dois remédios. “É necessário muito mais investimento em pesquisas”, diz.

A jornalista Maria Antonieta, que não revela a identidade com medo do preconceito, contraiu tuberculose há três anos no local de trabalho. Viveu um drama que nunca imaginou. “As pessoas me olhavam com cara de nojo. Foi preciso muita força de vontade para vencer também as reações ao tratamento”, lembra.

O professor da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, Madhuri Reddy – que pesquisa os obstáculos à longevidade humana –, disse à Revista do Brasil que falta conhecimento até mesmo sobre os medicamentos disponíveis. “Não sabemos quais devem ser as dosagens seguras e eficazes, os intervalos e a duração do tratamento para as especificidades de cada população. E muito menos como administrá-los em pessoas vulneráveis, como grávidas, lactantes ou crianças muito pequenas. Por isso trazem tantas reações.”

Lógica do mercado

A fria lógica de mercado faz com que as companhias privadas só pesquisem e produzam para quem pode pagar. “O setor público nacional e internacional foi, progressivamente, se afastando de suas responsabilidades e transferiu ao setor privado a tarefa de produzir vacinas, medicamentos e kits diagnósticos”, diz o ministro José Gomes Temporão. Michel Lotrowska, dos Médicos Sem Fronteiras, diz que há parcerias público-privadas gerando pesquisas de medicamentos, vacinas e diagnósticos. Mas faltam recursos para a fabricação, centros para testes clínicos onde as doenças são endêmicas, e o acesso às pesquisas das multinacionais e das universidades esbarra na propriedade intelectual.

Um relatório da OMS diz que o atual sistema de patentes, baseado no monopólio, impede o acesso das populações pobres aos fármacos. E cobra dos governos investimentos em inovação e acesso. “Fora o governo americano, o maior financiador de pesquisa e desenvolvimento é a Fundação Melinda & Bill Gates. Isso é inadmissível. A responsabilidade é dos governos”, dispara Lotrowska.

Em setembro, uma edição da revista americana Nature foi dedicada às doenças negligenciadas. Carlos Morel, coordenador do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e sua equipe são autores de um dos artigos publicados. O texto aponta o histórico desequilíbrio entre pesquisa, desenvolvimento tecnológico e inovação, a falta de investimentos em educação e de uma política que articule universidade, governo e setor produtivo, que resultam nesse quadro perverso.

Vinculada ao Ministério da Saúde, a Fiocruz é reconhecida mundialmente no combate às doenças parasitárias. “Em 2008 vamos lançar um medicamento contra malária desenvolvido em parceria com a DNDi (Iniciativa de Medicamentos para Doenças Negligenciadas, na sigla em inglês)”, adianta Morel. Em julho a instituição firmou acordo de cooperação científica com o laboratório americano Genzyme. A primeira fase prevê o desenvolvimento de novos fármacos contra a doença de Chagas. A criação, em 2003, da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde é outra iniciativa no combate à tuberculose, dengue, doença de Chagas e hanseníase. O orçamento da secretaria, então de 15 milhões de reais, é de 79 milhões em 2007. Para pesquisadores brasileiros, ainda é pouco, mas é um começo.

Em 1975 a OMS criou um departamento específico para cuidar das doenças então chamadas tropicais. Em 2000 a ONU fixou os oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, a serem cumpridos até 2015 pelos países signatários, entre eles o Brasil. Um deles é o combate a aids, malária, tuberculose e o acesso a medicamentos essenciais (os outros sete são acabar com a fome e a miséria; educação básica de qualidade para todos; igualdade entre os sexos e valorização da mulher; reduzir a mortalidade infantil; melhorar a saúde da gestante; qualidade de vida e meio ambiente; e todo o mundo trabalhando pelo desenvolvimento).

Mais recentemente, a causa vem ganhando adeptos entre celebridades. Ainda que por trás do discurso de solidariedade e justiça social esteja a urgência de conter as febres da exclusão social – que rompem os bolsões de miséria, chegam aos países ricos, rondam as mansões e os condomínios da classe média –, parece que os interesses de mercado, enfim, começam a se movimentar. “É que sem tratamento adequado as doenças se alastram e não escolhem classe social”, avisa a especialista Cléa Bichara, do Instituto Evandro Chagas.

Colaborou Elielton Amador

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