Crônica

O sermão do morro

Tropa de Elite tem qualidades cinematográficas, mas é pregação: toda a PM é repugnante; pacifistas e universitários são todos patetas; torturas jamais são aplicadas em inocentes; ninguém no Bope é corrupto e só ele resolve

mendonça

 Comecemos pelos elogios: Tropa de Elite, dirigido por José Padilha, é um filme de montagem ágil, com um ótimo roteiro, boa fotografia e um elenco talentoso. Em resumo: é uma obra cinematográfica de qualidades técnicas inegáveis.

Apenas por seus méritos teria sido capaz de alcançar notável sucesso, mas quis o destino que fosse abençoado pelos deuses da publicidade gratuita em pelo menos dois aspectos. Primeiro por causa da circulação através da pirataria e segundo por se tornar o centro de um debate: de um lado ficam os que alegam que ele apenas mostra a realidade; de outro, os que o acusam de fazer apologia da violência policial.

Fico com a segunda turma. Vamos ao porquê.

Assim que Tropa de Elite começa temos a definição do seu foco narrativo: quem nos conta a história é um oficial graduado do Batalhão de Operações Especiais (Bope), o capitão Nascimento. Conheceremos a trama, os personagens, e interpretaremos os fatos a partir de sua visão de mundo.

E sua visão de mundo não deixa margem a dúvidas: o tráfico de drogas é um mal e é preciso derrotá-lo. Mas quem o fará? A polícia venal que se beneficia de propinas? Movimentos civis especializados em passeatas? Não. Para vencer essa luta, a sociedade só conta com uma opção razoável: um adversário tão feroz quanto os próprios traficantes. O Bope.

Depois de expor o problema, Tropa de Elite passa para a fase de comprovação de sua idéia. E, como geralmente acontece nos filmes que querem provar uma tese, ele tende a ser simplificador ao retratar os que discordam de sua leitura da realidade: os oficiais da Polícia Militar são repugnantes de tão corruptos (e não há uma exceção sequer). Os militantes de organizações pacifistas são crédulos, coniventes, ingênuos e dominados por aqueles que combatem. E os estudantes universitários não passam de um bando de patetas cujo único objetivo na vida é fumar maconha (também aqui não há exceções, como fica claro na cena em que Matias enfrenta toda uma classe e até o próprio professor).

Será o confronto militar o único caminho para acabar com a ação danosa do tráfico? Não há mesmo nenhuma opção digna de crédito no plano institucional? Não há nada que se lhe possa contrapor no nível da guerra das mentalidades? Será que a possibilidade da legalização não mereceria ao menos ser aventada?

Teremos de ver outro filme para refletir sobre essas questões, pois não há voz dissonante em Tropa de Elite. Não há um confronto de idéias sobre como lidar com a questão das drogas ou sobre o emprego da violência, porque estamos sendo guiados pela voz do capitão Nascimento, e ele não se cansa de repetir, como um autêntico pregador, que só o Bope pode impor a ordem.

Mostrar a opinião contrária de forma servil e caricata não me parece o melhor caminho para defender um argumento. Muitos movimentos políticos associados à opressão nasceram ao disseminar explicações reducionistas e ridicularizar seus opositores. E filmes assim nós sabemos como terminam.

Isso explica por que, apesar de ter admirado Tropa de Elite e ter passado boa hora e meia assistindo-o, coloco-me do lado dos que afirmam que ele é tudo, menos imparcial, mostrando apenas as coisas como elas são. E por que, apesar de às vezes ter a aparência de um debate, ele é na verdade um sermão.

P.S.: Para aqueles que dizem que o filme “mostra as coisas como realmente são”, lembro que não há nenhum corrupto no Bope, que as torturas jamais são aplicadas em inocentes e que ninguém morre por balas perdidas.

José Roberto Torero é escritor, roteirista de cinema e TV (Pequeno Dicionário Amoroso, Retrato Falado), colunista de Esporte na Folha de S.Paulo e blogueiro (blogdotorero.blog.uol.com.br)