Política

O valerioduto do PSDB

O julgamento do STF no caso do “mensalão” pode não ter sido político, mas o da mídia é. Agora que a origem do valerioduto está chegando ao Supremo, a mãe de todos os escândalos é tratada como mensalão “mineiro”, e não tucano

José Cruz/ABr

Eduardo Azeredo, senador por Minas Gerais (PSDB): empréstimos de fachada somaram 28,5 milhões de reais

Depois de acolher a maioria das denúncias do procurador-geral da República no caso do “mensalão”, é inevitável que o Supremo Tribunal Federal (STF) também aceite as denúncias contra os envolvidos no “escândalo do valerioduto”, incluindo altas figuras do PSDB, como o senador Eduardo Azeredo, ex-presidente do partido, e o governador de Minas, Aécio Neves.

Foi na campanha de Azeredo ao governo de Minas em 1998 que Marcos Valério criou o engenhoso esquema de camuflar com empréstimos bancários as doações de caixa dois de empreiteiras, assim como dinheiro desviado de contratos de publicidade de órgãos públicos. Canalizados para sua empresa, a SMP&B, esses recursos pagaram a caríssima campanha do PSDB e seus aliados. Quatro anos depois, Marcos Valério proporia o mesmo esquema à coalizão PT-PL para financiar a campanha de 2002.

O mensalão foi um filhote do valerioduto, esse sim a mãe de todos os escândalos, tanto pela ordem dos acontecimentos quanto pela sua dimensão. Por um dos documentos apreendidos pela Polícia Federal, 150 políticos podem ter sido beneficiados pelo valerioduto, entre os quais 82 deputados federais ou estaduais. É certo que o indiciamento atingirá a casa das dezenas. O inquérito estima que a campanha de Azeredo tenha chegado a 100 milhões de reais. Os empréstimos de fachada dos bancos somaram 28,5 milhões. Mas seu comitê só registrou oficialmente 8,55 milhões.

Alguns juristas dizem que a independência demonstrada pelos juízes no caso do mensalão foi um marco na evolução da democracia. Por isso, fica difícil agora para o STF recuar aos velhos tempos em que se submetia docilmente à ditadura militar e à violência dos pacotes econômicos. Por exemplo, nunca julgou o seqüestro da poupança pelo governo Collor. O STF sinalizou que a “República e suas instituições já não toleram costumes frouxos”, avaliou o jornalista Luiz Martins.

A imprensa admite que o Supremo nunca foi tão independente, embora não queira dar esse mérito ao presidente Lula, que nomeou a maioria dos atuais ministros. Também a Polícia Federal e o Ministério Público nunca foram tão independentes, na opinião do jurista Fábio Konder Comparato. O voto do relator Joaquim Barbosa, contundente, foi elogiado pela mídia e seu autor, o primeiro ministro negro do Supremo, nomeado por Lula por esse motivo emblemático, exaltado em todas as capas de revistas.

Houve deslizes, alguns deles sérios, mas eles não alteram o caráter histórico do julgamento. O principal foi a devassa dos diálogos privados entre dois juízes, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski, pelo fotógrafo de O Globo. Cármen Lúcia decidiu renunciar e só voltou atrás ao ser advertida de que a repercussão seria ainda mais danosa para todos. Juristas e advogados também acham que juízes não devem dar entrevistas à imprensa. E quase todos os ministros do Supremo deram entrevistas e continuam dando, assim como o procurador-geral.

Faca no pescoço

O ministro Marco Aurélio de Mello, por exemplo, disse aos jornalistas que o banqueiro Salvatore Cacciola tinha o “direito natural” de fugir à Justiça. Com apoio da cúpula do Banco Central do governo Fernando Henrique, o banqueiro deu um prejuízo direto de 1,6 bilhão de reais ao povo brasileiro, ou mais de 3 bilhões de reais no câmbio da época, algo como 30 vezes os valores do valerioduto de Minas ou do mensalão. Fugiu graças a um habeas corpus concedido pelo próprio Marco Aurélio. Por isso, já há propostas para incluir novas tipificações de crimes de imprensa na Lei de Imprensa, assim como para proibir juízes de dar entrevistas, no novo código de ética que está sendo discutido pelo Conselho Superior da Magistratura.

Algumas críticas ao julgamento – por exemplo, a da fragilidade das provas – fazem parte do jogo natural de defesa, o chamado “direito de espernear”. É tradição na Justiça, na fase de inquérito, o benefício da dúvida ficar com a promotoria: “in dubio pro societatis”, diz o latim dos advogados. Já no julgamento, propriamente, o beneficio da dúvida é do réu. “In dubio pro reo.” Por isso, um dos juízes, ao votar pela aceitação da denúncia contra Gushiken, admitiu que se fosse o julgamento final do caso ele não teria dúvidas em inocentá-lo.

Sentindo-se “furada” por O Globo, a Folha de S.Paulo deu primeira página a meros fragmentos de uma fala de Lewandowski ao telefone ouvida clandestinamente por uma repórter do jornal, entre eles a frase que ficaria famosa: “O Supremo votou com a faca no pescoço”. A expressão impressionou tanto que entrou no vocabulário da política. Até que ponto essa pressão da mídia influi nos votos? Certamente, no caso-limite de Gushiken, em que a denúncia foi aceita por apenas um voto de diferença, o clima de pressão foi decisivo.

O economista Luiz Gonzaga Belluzzo, amigo de vários juízes do Supremo, revelou em entrevista à Folha que muitos juízes lhe disseram ter sido “difícil suportar” a pressão. O cientista político Fábio Wanderley Reis considerou a pressão “indesejável”, já que a instituição deveria julgar de modo imparcial.

Moralismo de classe

Em muitos julgamentos promotores usam o argumento do “clamor popular” para pedir rigor nas sentenças. Mas estaríamos mesmo frente a um “clamor popular”? Fábio Konder Comparato diz que não. Que houve, isso sim, uma “grande vocalização da classe média, que é retrógrada”. Diz que juízes são muito sensíveis a essa vocalização porque eles próprios se originam das classes médias. E por que a classe média? Trata-se de uma classe muito sensível ao discurso moralista, como já apontou nossa sociologia. Tanto assim que um discurso puramente moralista mobilizou a classe média para a Marcha da Família com Deus e pela Propriedade, que abriu caminho ao golpe de 1964. O cientista político Amaury de Souza apontou outro fator para a grita da classe média, em entrevista ao Estadão: “O Brasil melhorou nos últimos 15 anos, mas não há percepção disso pela classe média”, que se sente explorada, pagando mais impostos.

Se há convergência na avaliação do julgamento pelo Supremo, predominam as críticas ao desempenho da mídia, apesar da contribuição dos jornalistas nas investigações e ao mostrarem que, por trás da falsa solenidade do Tribunal, os juízes são pessoas comuns que brigam entre si e têm medo da opinião pública.

Belluzzo diz que a “mídia simplificou demais: “Ficou uma coisa de bandidos contra mocinhos”. A mídia não contextualizou de forma adequada o episódio do mensalão, deixando-se pautar e usar descaradamente pela oposição. Por exemplo, endossou o truque de chamar o caixa dois da coalizão PT-PL de “mensalão”, para diferenciá-lo do valerioduto, quando é óbvio que deputados do PT não precisavam de mesada para votar pelo governo.

Como reconhece Maria Inês Nassif, no jornal Valor Econômico, por quase dois anos a oposição tratou o caso do mensalão como uma anomalia introduzida pelo PT no sistema político, quando na verdade Marcos Valério era simplesmente um profissional do ramo da lavagem de dinheiro em montagem de caixa dois para campanhas eleitorais, um profissional que não tem partido. Em vez de se debruçar sobre as razões pelas quais esses esquemas passaram a existir, e apoiar uma reforma política ampla, a mídia, a reboque da oposição, limitou-se a demonizar o PT.

Luiz Gonzaga Belluzzo também adverte que a mídia deveria evitar se colocar na posição de juiz. “Existe uma instituição encarregada de julgar”, diz o professor da Unicamp, elogiando o desempenho do Supremo. No Observatório da Imprensa, nosso principal órgão de acompanhamento crítico da imprensa, o jornalista Luiz Martins diz que cada vez mais os jornalistas investigativos dão preferência ao “prato pronto” que lhes é oferecido ora pela polícia, ora pelo Ministério Público: “A imprensa funcionaria então como uma espécie de tribunal ad hoc, capaz de acusar e julgar com extrema rapidez, sendo a execração pública uma forma de julgamento, ainda que, por vezes, à custa de inocentes”.

Luiz Martins analisou longamente a tese da faca no pescoço e disse que, embora publicidade opressiva seja um conceito ainda não incorporado pela mídia, já freqüenta o jargão do mundo jurídico: “Significa exatamente a falta de condições de deliberação e julgamentos tranqüilos, sem qualquer coação, sem qualquer faca no pescoço. Significa também o linchamento midiático, vexaminoso e precipitado, tão odioso quanto provas obtidas sob tortura e que depois de restabelecidas as condições normais até anulam um processo”.

O fato é que a mídia já condenara os líderes petistas e se sentiria derrotada se o STF não aceitasse os pedidos de indiciamento. Foi como se tivesse se tornado uma das partes do processo. Uma dimensão dramática do episódio, que tem a ver apenas indiretamente com a mídia, foi a profundidade do mal-estar provocado pelas denúncias do mensalão em petistas e simpatizantes. O partido tinha de fato construído uma imagem de instituição dotada de uma ética superior. Mesmo eleitores que não simpatizavam com o PT admiravam suas figuras emblemáticas, como Genoino, Mercadante, Suplicy, Marina Silva, Olívio Dutra. Tudo isso acabou a partir das denúncias de Roberto Jefferson, deixando um sentimento de grande vazio nas pessoas. Um sentimento de perda coletiva.

É consenso entre analistas políticos que calou fundo a hipocrisia dos dirigentes petistas ao proclamarem que “O PT não rouba nem deixa roubar”, enquanto por baixo do pano adotavam métodos ilegais de financiamento de campanha dos tucanos. Enganar o eleitor foi mais danoso que o próprio fato de usar caixa dois, o qual o brasileiro enfim parece tolerar. É essa dimensão que talvez escape aos dirigentes do PT quando alegam que ainda é o partido mais ético. Tecnicamente pode ser verdade. Mas não responde ao sentimento de decepção.

Curiosamente, a mídia foi ainda mais hipócrita, as descer a lenha no PT, sem mencionar, durante esses dois anos, o valerioduto de Azeredo. Também é indiscutível que a mídia investiu pesado na ampliação das denúncias, na criminalização do PT e na criação de um clima de suspeição generalizada contra todos os petistas. Durante a cobertura das CPIs, era comum as manchetes dos jornais reproduzirem ao pé da letra as falas acusatórias da oposição, esta ainda mais hipócrita.

O dano à imagem do partido não será revertido. Essa é a tragédia da condenação pela mídia. É uma condenação que gruda na imagem das pessoas como uma mancha de caqui em roupa branca. Não há alvejante que tire. Se daqui a dois anos o processo chegar a seu final e maioria dos réus for absolvida, a mídia dirá: “Acabou em pizza”.

O julgamento do Supremo pode não ter sido político, no sentido estrito. Mas o da mídia só é político. Agora que o valerioduto dos tucanos está chegando ao STF, qual o comportamento da mídia? Foram perguntar ao Fernando Henrique se ele sabia. Não. Falam de valerioduto tucano? Não. Falam em valerioduto de Minas. E foram pinçar no relatório da Promotoria a única referência a um ministro de Lula, Mares Guia, jogando isso nas manchetes, para de novo implicar o PT. Omitem, inclusive, que esse político era do PTB na época em que Marcos Valério e o PSDB criaram o valerioduto.

Bernardo Kucinski é professor titular do Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA/USP. Foi produtor e locutor no serviço brasileiro da BBC de Londres e assistente de direção na televisão BBC. É autor de vários livros sobre jornalismo