Crônica

As grandes paixões

Ah, essa grande dama que tanto freqüenta o aristocrático salão quanto visita a pobre favela para nos despertar para a vida e a liberdade

Mendonça

Minha primeira grande paixão foi Narizinho, a menina cor de jambo do Sítio do Picapau Amarelo. Eu não queria tomar o lugar de Pedrinho, seu companheiro de viagens, brincadeiras e correrias. Eu queria entrar na história, ser parte dela, conquistar a menina com minhas artes e feitos. Então eu reescrevia os livros. Dava uma mãozinha para o Monteiro Lobato, por assim dizer. Na minha imaginação, é claro.

É verdade que havia a Eliana, atriz das chanchadas da Atlântida. Nossa! Quanto ciúme eu tive do Anselmo Duarte, quanta inveja tive do Oscarito e do Grande Otelo, que contracenavam com ela… Mas a Eliana foi uma mera (mera?) aventura cinematográfica. Coisa de fim de semana. Paixão mesmo, foi a Narizinho. Paixão criança, que eu nunca esqueci, e a que sou fiel até hoje.

Agora, paixão com P maiúsculo, a primeira foi Constance Bonacieux, a hospedeira de D’Artagnan, em Os Três Mosqueteiros, de Alexandre Dumas. Casada com o insípido monsieur Bonacieux, Constance se deixa tomar por uma paixão ao mesmo tempo tórrida e pura pelo seu hóspede. Ali, entre golpes de espada e de política, sob o olhar simultaneamente altivo e satânico do Cardeal de Richelieu, foi que aprendi que o verdadeiro amor apaixonado não reconhece limites nem barreiras, sendo força de entrega e de recebimento. Por essa época também li Iracema e O Guarani, de José de Alencar. E me apaixonei. Menos pelas personagens do que por aquele jeito apaixonado e apaixonante de escrever do escritor cearense.

A Dumas devo minha próxima paixão: Anita, a brava mulher que combateu ao lado de Garibaldi na Guerra dos Farrapos e pela libertação da Itália, onde morreu. É que li as Memórias de Garibaldi, escritas pelo genial francês. Fiquei maravilhado com aquelas aventuras de Farrapos e gaúchos meus conterrâneos de antanho, lutando pela república e pela liberdade, na pena daquele que era meu herói literário preferido, o incrível Dumas. E em meio àquele redemoinho da história, lá estava a apaixonante Anita, com seus olhos e cabelos negros, seu busto arfante de desejo, e de desejo de justiça.

Minha paixão seguinte foi manhosa: Capitu, a que era mais mulher do que eu era homem, como disse o Bentinho, seu marido e narrador. Capitu me apaixonou pela dúvida: afinal, foi ou não foi adúltera? Por isso nunca concordei com a crítica tradicional que considerava seu “pecado” coisa líquida e certa. Tampouco concordo com uma certa visão hoje corrente, que a vê apenas como uma pobre vítima da desconfiança do marido. Bonito mesmo é sentir a dúvida oblíqua e dissimulada.

Por aí eu já estava fazendo vestibular e entrando na faculdade de Letras, coisa meio inusitada para homem naqueles tempos de antigamente. E as paixões foram se sucedendo: Emma Bovary, a Nega Fulô, Diadorim, Madalena, a professora de São Bernardo… Caso curioso foi o do Erico Verissimo: admirei todas as mulheres de Erico, Clarissa, Fernanda, Ana Terra, Bibiana, Luzia Cambará, Ismália Caré… Mas não me apaixonei por nenhuma delas; eram todas muito sérias e sisudas, até a satânica Luzia, que escrevia poemas, tocava cítara e gostava de espiar cadáveres. O que me deixou apaixonado mesmo foi o olhar de Erico por sua terra, o Rio Grande do Sul e o Brasil, um jeito quieto, sério, de olhar apaixonado, sem perder a capacidade de crítica. Erico completou meu “apaixonamento” pela literatura, essa grande dama que tanto freqüenta o aristocrático salão quanto visita a pobre favela para nos despertar a paixão pela vida e pela liberdade da imaginação, coisa tão em falta hoje em dia.

Flávio Aguiar é professor do programa de pós-graduação de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo e editor-chefe da Carta Maior (www.cartamaior.com.br)