Literatura

Viagem além do vestibular

Alguns dos mais importantes vestibulares deste ano, como USP e Unicamp, repetem os livros sugeridos para as provas do ano passado. A leitura dessas obras históricas, porém, é muito mais do que oportunidade de bom desempenho. É uma forma de proporcionar a si próprio uma dupla viagem, no tempo e na nossa literatura. O melhor de tudo será se os viajantes, os leitores, compreenderem que a viagem vai além do vestibular. Na verdade, é um convite para “o depois”, para com mais calma, sem as aperturas da competição por um lugar na universidade, mais maduros talvez, se deliciarem com essas obras que lançam luzes sobre a história do Brasil, de Portugal e do mundo.

sxc

Auto da Barca do Inferno

autoGil Vicente
Em 1517, o colonialismo recém-desembarcava no futuro Brasil e essa trama algo cômica expunha dos pequenos aos grandes vícios sociais que portugueses para cá traziam. Os autos – peças da Idade Média – tinham caráter religioso e estrutura muito diferente da do teatro atual. Não havia atos nem cenas; tinham por tempo o tempo divino e por espaço o universo à vista de Deus. O texto de Gil Vicente se passa no embarcadouro – de onde naus partem para o céu, o purgatório ou, sempre as mais carregadas, o inferno. Os personagens do cotidiano lisboeta, como o fidalgo, o sapateiro, a alcoviteira, o padre corrupto, o agiota, devem fazer face ao Anjo, da barca para o céu, e ao Diabo, da barca para o inferno. Sem exceção, acabam na barca do inferno. De uma simpatia algo rascante, o Diabo não perdoa os personagens por seus pecados como prepotência, ambição, luxúria, revelando-se um grande advogado de acusação.

Memórias de um Sargento de Milícias

memoriasManuel Antonio de Almeida
Esta obra do jornalista carioca foi publicada em folhetins (em sucessivos dias, em jornal) de 1854 a 1855. Descreve a época em que dom João VI estava no Brasil e as estripulias de Leonardo e Luisinha para sobreviver numa sociedade desorganizada, dividida entre arrogantes senhores de terras e escravos submissos. No meio cresce uma incipiente classe média empobrecida, da qual nossos jovens apaixonados fazem parte. É um Brasil ainda lusitano, como o jovem Leonardo, filho bastardo de imigrantes portugueses. O livro define, de acordo com um ensaio do professor Antonio Candido, a “dialética da malandragem”; figura que se tornaria um dos emblemas da identidade nacional. É o personagem que está sempre a um passo da ilegalidade, ora a trespassa, ora volta para ela, e assim ajuda a entender esse Brasil onde, muitas vezes até hoje, os favores pessoais contam mais do que as leis, os direitos e os deveres.

Iracema

IracemaJosé de Alencar
O autor cearense foi o grande mapeador literário do Brasil. Descreveu o sertão (O Sertanejo, 1875), o pampa (O Gaúcho, 1870), o interior paulista (Til, 1872); a então modernidade (Senhora, 1875, Sonhos d´Ouro, 1872, Lucíola, 1862); a formação da nação (O Guarani, 1857, e Iracema, 1865). O romance narra em prosa exaltada a lenda da virgem dos Tabajaras, detentora do segredo da jurema, erva algo alucinatória que revela o mundo dos sonhos a quem dela sorve. Iracema deveria permanecer “a virgem dos lábios de mel”, mas apaixona-se por Martim, conquistador português com quem tem o filho, Moacir, “primeiro cearense”, cujo nome o autor traduz por “o filho da dor”. Iracema é um anagrama de América. Diz-se que foi de invenção de Alencar, embora alguns defendam que o nome já constava de crônicas antigas. O certo é que o romance o popularizou, a ponto de uma atriz do século passado ter adotado “Iracema de Alencar”!

A Cidade e as Serras

A Cidade e as SerrasEça de Queirós
A seqüência cronológica propõe a volta ao universo da literatura portuguesa. O romance de Eça foi publicado em 1901, um ano após sua morte. Com as questões ambientais hoje em alta, ganhou novo relevo, pois sua fama era de não ser dos melhores desse áspero crítico dos atrasos e das condições sociais ruins do seu país. O foco de A Cidade e as Serras é a relação entre os amigos Zé Fernandes, de Guiães, o narrador, e Jacinto, de Tormes. Jacinto e Fernandes, filhos de famílias abastadas, encontraram-se em Paris, onde o primeiro nasceu. Mesmo adepto da civilização e do progresso, Jacinto entedia-se e decide visitar a terra de seus antepassados, nas serras remotas de Portugal. Descobre uma “nova velha vida”, junto às faldas das montanhas e… às fraldas dos filhos que tem com Joaninha, prima de Fernandes. O romance equilibra a urbanidade sedutora e a natureza amorosa, a natureza da alma de Portugal.

Dom Casmurro

Dom CasmurroMachado de Assis
O romance de 1899 fala do mundo tortuoso, torturado e torturante do ciúme. Narrado em primeira pessoa, expõe as dúvidas cruéis de Bento Santiago, o Bentinho, sobre a fidelidade da mulher, a bela e enigmática Maria Capitolina, a Capitu, que povoou seus sonhos de juventude e seus pesadelos de homem maduro. Bentinho “vê” o adultério de Capitu com seu amigo Escobar, que morre afogado no mar revolto do Rio de Janeiro, onde quer que olhe: nos olhos de Capitu ao contemplar o amigo morto, na semelhança do filho com o retrato de Escobar. Capitu, uma das personagens mais fortes e interessantes da literatura de todos os tempos, é descrita como tendo “olhos de ressaca” e “cigana oblíqua e dissimulada”, expressão que Machado emprestara de outra similar em Carmen, conto de Prosper Merimée. O romance deixa na dúvida a existência ou não do adultério. Uma coisa é certa: é impossível não se apaixonar por Capitu.

Poemas Completos

Poemas CompletosAlberto Caeiro
Fernando Pessoa comparece nesta viagem com um de seus heterônimos. Pessoa (1888-1935), considerado um dos maiores poetas de todos os tempos e da língua portuguesa, criou alguns heterônimos – nomes e personalidades alternativos, imaginários, com os quais produzia poemas e notas várias de acordo com as características que atribuía a cada um. Os mais famosos foram Álvaro de Campos, crítico e ácido, Ricardo Reis, refinado autor de odes líricas, e este Alberto Caeiro, em cuja poesia reverbera o desejo por uma entrega completa à percepção primitiva da natureza, num momento e numa civilização em que isso já é impossível. Quase toda a poesia de Fernando Pessoa teve publicação póstuma – Poemas Completos saiu em 1946 –, mas sua leitura não apenas comove ainda milhares e milhares de leitores como o tornou um dos poetas mais presentes, como ressonância, em todas as literaturas do mundo.

Sagarana

SagaranaJoão Guimarães Rosa
Seus contos transfiguram a linguagem dos sertões mineiros numa prosa original, cheia de palavras velhas, neologismos, criações ou recriações do autor que imortalizou os sertões de sua terra (como também em Grande Sertão: Veredas, de 1956). Um dos meus contos favoritos de Sagarana é “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, em que um potentado do sertão cai em desgraça, é despossuído de tudo e decide refazer a vida numa aura de justiça e bem-aventurança. Termina encontrando seu destino e salvação ao enfrentar, para impedir injustiças, o bando do temível jagunço seu Joãozinho Bem-Bem. Entre o tiroteio e a esfaqueação cerrados, seu Joãozinho e Matraga se reconhecem como amigos, depois de retalhar um ao outro, e encomendam um a alma do outro para a outra vida. O conto revela o traço místico do autor, sob a fina observação da paisagem social, cultural, geográfica e lingüística do sertão mineiro.

Vidas Secas

Vidas SecasGraciliano Ramos
O tempo nos traz de volta ao Brasil: Graciliano Ramos e João Guimarães Rosa nos falam dos sertões do “Norte”, como se dizia quando os dois livros foram publicados: Vidas Secas, em 1938, e Sagarana, em 1945. Vidas Secas parece um livro de contos interligados pela presença de uma família de migrantes em fuga da seca e do flagelo social, que são o latifúndio e o mandonismo. Fabiano, Sinhá Vitória, seus dois filhos e a cadela Baleia (uma das personagens mais simpáticas da literatura) tornam-se símbolos de pessoas frágeis, abandonadas pelos poderes públicos, em sua busca por um “lugar ao sol” numa terra de injustiças flagrantes, o nosso Brasil. De fazenda em fazenda, de vila em vila, de seca em seca, terminam se dirigindo para a “cidade grande”, onde se tornarão força de trabalho da indústria que então dava os primeiros passos no país, sobretudo ao Sul, na tão grandiosa quanto áspera São Paulo.

A Rosa do Povo

A Rosa do PovoCarlos Drummond de Andrade
Livro escrito durante a Segunda Guerra Mundial e publicado em 1945, contém alguns dos poemas mais candentes de Drummond e firma a presença do poeta que combina o sopro épico, a denúncia social, o rigor da forma, a expressão contida, o lirismo. Fazem parte desta coletânea poemas famosos como “Nosso tempo”, “Canto ao Homem do Povo Charlie Chaplin” e “A Flor e a Náusea”, que abriga os versos: “Uma flor nasceu na rua!/ Passem longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego/ Uma flor ainda desbotada/ ilude a polícia/ rompe o asfalto./ Façam completo silêncio, paralisem os negócios/ garanto que uma flor nasceu/(…)Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde/ e lentamente passo a mão nessa forma insegura./ Do lado das montanhas nuvens maciças avolumam-se./ Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico./ É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”.